Comecemos pelo início. Há muito convencionou-se que os homens, pela sua própria natureza, necessitam de um governo, uma força maior e mais poderosa que qualquer indivíduo ou grupo de indivíduos, capaz de evitar o que Hobbes chamava de “estado natural de guerra”. Essa pelo menos é a fundamentação política e filosófica normalmente aceita para a existência dos chamados Estados modernos.
Por outro lado, os estudiosos da filosofia política logo perceberam que também precisamos de proteção contra os abusos daquela mesma força e, especialmente, contra a sua inerente propensão à corrupção e ao despotismo. O conflito social fundamental, portanto, não é — e nunca foi — a enganosa luta de classes descrita por Marx, mas o combate quase sempre desigual entre os indivíduos e o poder político, personificado pelo governo e seu monopólio do uso da força.
Os ingleses propuseram amenizar esse inevitável confronto de forças assimétricas através do parlamento, destinado a controlar os excessos e abusos do poder real. Outra receita foram as normas constitucionais, cujo principal objetivo é deixar claros os limites de ação dos governos e dar garantias de que certos direitos individuais básicos sejam respeitados.
Não por acaso, há um princípio legal republicano que reza que aos cidadãos é permitido fazer tudo que a lei não proíbe, mas aos agentes públicos só é permitido fazer o que a lei expressamente autoriza. Dilma está sendo julgada pelo Congresso justamente porque agiu em desacordo com as normas legais que regulam o sistema fiscal, orçamentário e financeiro do governo. Não interessa se ela agiu com boas ou más intenções. As leis existem para nos proteger dos abusos dos governantes e eles devem pautar suas ações estritamente de acordo com elas. Em resumo, os fins jamais justificam os meios.
Caso não haja controles estritos do poder do governante, corremos o risco de ver acontecer algo como atualmente ocorre com nossos vizinhos Venezuela e Bolívia, exemplos típicos de como a democracia “pura” pode ser utilizada para justificar grotescos espetáculos de autoritarismo, em que as mais comezinhas regras universais de justiça e proteção dos direitos das minorias são postas de lado, em nome de abstrações como “interesse do povo” ou “bem comum”.
O processo de impeachment de que somos testemunhas atualmente nada mais é do que o velho sistema de freios e contrapesos, proposto inicialmente por Montesquieu, em funcionamento. A divisão equilibrada de poderes serve justamente para evitar abusos por parte de qualquer um deles.
Os petistas alegam que, se não houve “desvio”, não há crime. Segundo esse raciocínio, leis orçamentárias, leis de responsabilidade fiscal, etc., são meras baboseiras, sem qualquer utilidade prática. Desde que o presidente seja honesto, como ela diz ser, e não tenha embolsado dinheiro público indevidamente, tudo é possível. Assim, se o governo está sem dinheiro, nada mais natural que utilizar temporariamente os recursos do banco estatal, mesmo que isso seja terminantemente proibido por lei.
Dilma e sua equipe não se importam de, por exemplo, enviar uma proposta de orçamento para o Congresso contendo um superávit primário de 30 bilhões e, no final do ano, apresentar um déficit de 120 bilhões, desde que o gasto não autorizado pelo legislativo tenha sido empregados em benefício dos pobres. Nesse sentido a tal Lei de Responsabilidade Fiscal nada mais representa para ela e seu partido que letra morta.
Eles fingem não entender que leis orçamentárias e fiscais existem justamente para que a sociedade, através dos seus representantes, possa exercer alguma fiscalização sobre os gastos de dinheiro público, que, afinal, nada mais é do que dinheiro extraído a força dos pagadores de impostos.
Eles também fingem não compreender que, embora o Estado brasileiro (e não o governo da hora) seja o único acionista da Caixa Econômica, do Banco do Brasil, do BNDES, a maior parte dos recursos neles depositados pertence aos seus correntistas, poupadores e, principalmente aos trabalhadores brasileiros.
Eles fingem ainda desconhecer que a legislação que proíbe as tais “pedaladas” foi idealizada justamente porque no passado existiu uma verdadeira orgia financeira entre governos (principalmente estaduais e municipais) e bancos públicos, o que levou muitos deles à falência durante os últimos vinte anos do século passado, prejudicando não só seus correntistas, mas também os cofres públicos, leia-se: os pagadores de impostos.
Enfim, eles fingem desconhecer que dinheiro público não é capim, que precisa ser usado com parcimônia, cautela e estritamente nos termos da lei. Portanto, golpe contra a democracia seria deixar que governantes irresponsáveis e inescrupulosos façam o que quiserem com o nosso dinheiro impunemente.
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