O símbolo deste Brasil era um ícone global: Lula. Era em seu campo o que é Messi para o esporte e Shakira para a música. Lula, o mito vivo que fazia na política o que Pelé fazia com a bola.
A realidade é diferente. A estabilização e a transformação brasileira foram obra do maior estadista contemporâneo da América Latina: Fernando Henrique Cardoso. Ele acabou com a inflação crônica, liquidou a desordem cambial e as desvalorizações recorrentes, potencializou seu setor empresarial e implementou os programas sociais hoje denominados Bolsa Família, feitos obtidos apesar da “meia década perdida” de 1998 a 2003.
Quando Lula chegou à Presidência, em 2003, confluíram o legado de Cardoso e a insaciável voracidade da China por matérias-primas, gerando uma década econômica dourada. O venezuelano Chávez, com um poder interno absoluto e seu petrolão de cheques abarrotado, se tornou uma dupla ideal com quem financiar e transformar o Foro de São Paulo em um projeto político arrasador, que dominou nossa região com suas vertentes autoritárias, abusivas ou democráticas.
Na Bolívia, constatamos a potência da blindagem: Lula visitava o Chapare, colocava uma guirlanda de folhas de coca, que se transformam em cocaína e alimentam a delinquência no Brasil, e as críticas não tinham eco; Lula vinha com a empreiteira OAS para promover uma estrada a preço exorbitante, que destruiria um parque nacional e deslocaria comunidades indígenas, e os questionamentos se chocavam com um “se Lula apoia, deve estar bem”.
Em 2015 a economia chinesa esfriou, e a brasileira caiu numa aguda recessão. As cifras hoje são alarmantes: o déficit fiscal em relação ao PIB, a inflação, a taxa de desemprego e a aprovação da sucessora de Lula rondam os 10%. Isto já era complexo, mas o repúdio à classe governante gerado pelas investigações de Sérgio Moro tornaram a situação insustentável. Esse juiz, com uma triangulação implacável de prisões preventivas, delações premiadas e divulgação informativa, está liquidando os corruptos, sejam eles empresários, intermediários, funcionários públicos ou políticos. Moro está mudando estruturalmente o seu país.
O Governo tentou uma cartada quando as investigações tocaram Lula, nomeando-o como ministro para que se esquivasse de Moro e passasse ao âmbito do Supremo Tribunal Federal. Foi como colocar um pedaço de cimento num balão que está murchando. A indignação nas ruas explodiu, o julgamento político da presidenta foi aprovado em 17 de abril na Câmara dos Deputados por mais de dois terços dos seus membros, passa agora ao Senado, e o desenlace é previsível. As Olimpíadas chegam ao Rio em agosto, mas parece impossível que seja Dilma Rousseff quem a abrirá.
Nossa região está em vigília e confusa. Alguns que aplaudiram quando um investigador estrangeiro e o Congresso depuseram por corrupção um Presidente guatemalteco hoje questionam as instituições e a Justiça do Brasil quando estas atuam perante denúncias mais graves. Alguns comentam que investigados por corrupção apoiaram a destituição, sem observar que o Governo oferecia benesses em troca do voto desses congressistas, além de receber o apoio de outros que também estão sendo investigados. Considerar que a manipulação de contas fiscais não merece um julgamento político é justificar a fraude financeira que causou a derrocada mundial de 2008, ou apoiar a maquiagem fiscal grega que desatou a crise do euro. A América Latina exige consistência, clareza e rumo decidido no Brasil perante esta conjuntura histórica.
As notáveis diferenças entre o Brasil e a Venezuela hoje são evidentes. A imprensa livre brasileira é exemplar; se fosse venezuelana, estariam todos os seus jornalistas e meios de comunicação amordaçados, exilados ou enclausurados. O juiz Moro representa a independência das instituições brasileiras; se fosse venezuelano – como Afiuni – teria sido encarcerado e estuprado. Os jovens brasileiros protestam ativamente nas ruas contra o Governo; em Caracas, estariam vários metros debaixo da terra, encerrados na tumba.
Este mês selará um antes e um depois na nossa região.
Abril no Brasil: o ocaso de um mito político e o nascimento de um símbolo judicial. O ex-presidente brasileiro é hoje alguém que poderia ter sido Pelé, mas acabou procurando um espaço na segunda divisão para escapar de um juiz implacável. A dimensão mitológica de Lula acabou, a lenda do justiceiro Moro começa.
Jorge-Tuto Quiroga, ex-presidente da Bolívia
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