Esse problema nos pega forte. Para conjurá-lo, inventamos o relógio. Demos uma fina precisão ao fluxo temporal. Basta manter a pilha em dia. Ou nem isso. O pulso de um átomo bate um segundo eternamente perfeito. Cortamos o tempo ao mínimo. Dominamos o tempo. Dizem. Há controvérsia...
A métrica do tempo é uma antiga obsessão nossa — ou o tempo nos liquida. Cronos, o titã, comia seus filhos, conta-nos a antiquíssima mitologia grega. Com a ajuda da mãe, Zeus sobreviveu, matou o pai e inaugurou a dinastia dos deuses. Cronos é o nome que damos a uma das nossas mais caras intuições do tempo, a cronológica. Zeus matou o tempo. Talvez daí venha aquela expressão, matar o tempo. Matar quem nos matará. O pêndulo é contra nós. A passagem do tempo se associa à morte.
Muito antigamente não foi assim. As mais velhas intuições do tempo de que os gregos dispuseram não apontavam para os relógios, clepsidras, ampulhetas, medidas da sombra. Falavam da vida, não da morte. Tiveram nomes diferentes desse, “tempo”, que usamos obsessivamente, medrosamente. Chamaram-se Aiôn, o acaso, o que irrompe do inesperado, e é extraordinário. Também Kairós, a oportunidade, o tempo certo, meio acaso-meio decisão. Ou Cronos, a duração: longa, de doença; curta, de coluna de jornal; de ambas dizemos que são crônicas. Ethos, também. Na raiz da palavra “ética” pulsa um sentido arcaico do tempo: a demora no lugar próprio, a habitação que tem valor. Os gregos sabiam ainda que o tempo não é contínuo como uma régua e seus centímetros. Passado que causa presente, que causa futuro. Nada disso. Passado-presente-futuro enovelavam-se, “tudo ao mesmo tempo agora”. Depois vieram as especializações: para o passado, os poetas; para o presente, os legisladores; os adivinhos para o futuro. Desfibrou-se o tempo. Desfibraram-se pelo menos os poetas. Quando é um relógio que estabelece a tábua de direitos e deveres da poesia...
Acabamos com tudo isso. Com o acaso, porque assusta, é disruptivo, não permite contar. E não dá conta das durações eternas. Com a oportunidade porque é oportunista: ora ocorre, ora não, e ficamos pendurados numa espera e numa expectativa que não dominamos. Com a duração porque, se são as coisas que determinam seu tempo de ser, ficamos inertes diante de um passar que nos escapa. Com o ethos, o tempo da nossa duração humana no espaço-mundo, porque é um valor essencial, não numérico, não se presta ao cálculo. Foi nossa vontade de poder que dissolveu as antigas e generosas intuições do que, em falta de nomes mais variados, chamamos “tempo”. Vontade de poder, necessidade de redução a uma unidade controlável, que nos desse conforto diante do galope do tempo para o seu fim. Fim dos tempos, Julgamento final. Fim da História. Fim do mundo. Nosso fim. Tudo é ameaçador, se deixarmos o tempo germinar a sua passagem. Medir minuciosamente a passagem do tempo talvez nos permita quebrar, jogar fora, o último relógio antes da última hora.
Inventamos métricas. Nos mosteiros medievais a noite se dividia em momentos de oração, e esses momentos eram regidos por uma vela. Queimada um terço, oração; no segundo terço, oração; no fim da vela, oração. Laudes, Matinas, Prima: era a vela quem mandava na expressão da fé. E os relógios de sol. Os de água. Os de areia. E os mecânicos, eletrônicos, virtuais. Hoje, finalmente, não é o mundo que acerta as horas pelo Big Ben de Londres, é ele que se acerta pelo pulsar de um átomo. Conseguimos que a própria natureza dê a medida para conjurarmos o medo do tempo.
Tudo isso vem a propósito do Ano Novo. Nosso planeta fez uma translação completa em torno da sua estrela. Levou 365 dias. Outro ciclo, igual, começou no primeiro segundo de ontem. Isso é um fenômeno astronômico. Mas é, para nós, sobretudo um kairós. O momento oportuno. A possibilidade de fazer diferente desta vez. Uma nova chance. É para isso que fazemos propósitos de ano novo. Em geral são coisas boas. E se desta vez, pressionados por tantas medidas de um tempo que vai ficando curto, fizéssemos o propósito de cumprir os propósitos que fazemos? Não parece nada muito glorioso. Tratar melhor os pais velhinhos. Jogar papel nas lixeiras públicas. Voltar à aula de oboé. Nada demais. Mas pode salvar o mundo.
Marcio Tavares D’Amaral
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