Chego em casa, mas o aconchego do lar não atenua a amargura que trago na boca. Os jornais com notícias de sexta-feira — 13 — empilhados na sala de visita falam dos abomináveis atentados em Paris.
Meu olhos estão doentes, e mal leio os periódicos. A fofocalha que nos deleita em torno de quem vai ganhar o prêmio da maior imoralidade, da maior mentira, do discurso mais contraditório, da cena mais constrangedora, da maior ausência de medidas para diminuir uma pornográfica e estrutural desigualdade que desemboca em violência perde espaço para uma nova tragédia deste mundo urdido por nós mesmos.
Temos nossas caras esbofeteadas pelo que somos e encerramos dentro de nós. “Civilizados” e crentes escolhidos por Deus (e pela Razão!), continuamos com as mais plausíveis justificativas para o controle e o extermínio do outro. À Descoberta da América — que juntou a cara da Humanidade (a Europa) com a sua coroa (as populações ameríndias), esse outro desconhecido a ser conquistado e devidamente destruído — somam-se agora os vários islãs que julgávamos vencidos e que se relacionam conosco por imitação ou violenta rejeição.
De onde cheguei? Onde estava? Como era possível não saber da tragédia?
Vou por partes.
Na sexta, dia 13, eu, que moro em Niterói, me acordo às 5 da manhã para, às 10, seguir para São Salvador. Retorno à terra de meu pai para tomar parte num ato generoso: a comemoração do legado antropológico de Thales de Azevedo.
Em Salvador, almoço com os professores Ordep Serra e Paulo Ormindo de Azevedo. Ambos são intelectuais de longo alcance. Paulo é arquiteto e membro da Academia de Letras da Bahia e tudo sabe dos meandros antigos e modernos de Salvador. Ordep é um helenista de quatro costados, estagiário de Jean-Pierre Vernant e tradutor de especialistas em Grécia clássica. Já no aeroporto, sou gratamente surpreendido com o seu livro “Hinos órficos: perfumes”, um belo volume da série Kouros, numa tradução pioneira com notas penetrantes.
Eles me conduzem ao encontro “Relendo Thales de Azevedo, uma avaliação do seu legado”. Se ler é tudo, melhor que tudo, é reler.
Na sede da Academia de Letras da Bahia, participei com um velho amigo e colega, o professor Luiz Mott — cujo trabalho acadêmico inclui, entre outros, o importante estudo “Escravidão, homossexualidade e demonologia”, para não falar na sua pioneira luta contra a homofobia incrustada na cultura brasileira. A seu lado estava o jovem e brilhante doutor Diego Marques. Juntos, discutimos o que Thales de Azevedo realizou nos seus estudos da vida diária brasileira: do namoro ao banho de mar que virou praia, sem esquecer os ritos invisíveis dos nossos cotidianos.
Não fiz mais do que realçar como o trabalho antropológico tem tudo a ver com o estranhamento de rotinas — o ramerrão que fabrica a plausibilidade do real e produz a verdade para aquilo que dela escapa por intervenção das alteridades que nos confrontam e perseguem, seja a dos estrangeiros, a dos hábitos que estão fora e dentro de nós ou a do ambiente natural onde nos assentamos, o qual, até o último desastre, julgávamos confiável como as estrelas.
Falei com sentimento. Thales de Azevedo fez pesquisas fundamentais sobre o povoamento de Salvador e o catolicismo tradicional. Foi uma figura chave no estudo das relações raciais no Brasil, pesquisando o povo e as elites num livro único. Nos anos 80, começa a escrever sobre o futebol, dando o devido crédito ao meu pequeno trabalho. Em 1974, quando foi presidente da Associação Brasileira de Antropologia, convidou-me para realizar uma das conferências magnas daquela reunião. Foi quando elaborei minha análise do “Você sabe com quem está falando?”, ensaio no qual denuncio tanto o autoritarismo aristocrático e hierárquico nacional, quanto o nosso ambíguo amor pela verdade e pela igualdade.
Thales de Azevedo e seus descendentes, sobretudo seu neto Thales Leite, têm permeado fraternalmente minha vida. Como muita gente esquece, vale lembrar que todas as vidas atingem outras vidas. Algumas pela calúnia irresponsável; outras, pela maldade leviana, quando uma pessoa que se imagina como o sal da terra atinge agressiva e mentirosamente a honra do outro, e o excremento vai para as tais “redes" de esgoto. Outras, no limite da crueldade, matam em nome de Deus na tentativa de escapar das regras morais deste mundo, como é o caso que hoje cobre as folhas deste jornal.
Não custa, neste Brasil de intrigas insuportáveis, mentiras pantagruélicas e ataques caluniosos, como o que ocorreu com a atriz Taís Araújo, dizer que o contrário pode também acontecer. O preconceito e a aleivosia podem vir de cima, de baixo ou do lado. Mas há o remédio da comemoração, do elogio, do reconhecimento, da luta e do perdão. O lado abjeto dos extremismos só termina quando os abrigamos e, com esperança, buscamos neutralizá-los. Sublimação é a chave para esses quase-impossíveis reconhecimentos do humano, como dizia Freud.
Eu já vivi isso antes. Enquanto inocentemente participava da comemoração de Thales de Azevedo na Bahia, ocorria o ritual destrutivo do terrorismo, em Paris. Em casa, quando escrevo esta crônica, tenho a prova cabal dessas correntezas do traiçoeiro rio da Humanidade: uma inocente, a montante; outra, imensamente cruel, a vazante.
Roberto DaMatta
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