quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Patrimonialismo em comodato


A expressão “governo em comodato”, oportunamente usada em editorial do Estado para caracterizar a reforma ministerial dilmista (O Ministério do contubérnio, 4/10, A3), inspirou-me o título deste artigo. Pois este “governo em comodato” é expressão de algo mais profundo: o “patrimonialismo em comodato” que hoje é praticado no Brasil. Consiste em administrar o Estado como bem de família, mas passando a outro ou a outros o ônus do governo, bem como as benesses dele decorrentes. Essa é, aliás, uma variante de fenômenos mais largos, encontradiços na velha tradição política ibero-americana: o “patrimonialismo estamental” e o “patrimonialismo parental”.

O “patrimonialismo estamental” tem longa vida na cultura política brasileira. O modelito de gestão do público como privado, no Brasil do ciclo republicano, terminou dando ensejo a eficiente estamento burocrático que agia como colchão em que se amorteciam os conflitos da sociedade cooptada pelos donos do poder. Foi assim na “política dos governadores”, quando o pacto de cooptação era administrado a partir do consenso entre o chefe do Executivo federal e os Executivos estaduais, tendo como instrumento a Mesa Diretora do Congresso, com sua Comissão de Verificação de Poderes, que descabeçava, de entrada, aqueles que, nos vários Estados, tivessem ganho as eleições e não fossem do agrado da Presidência da República e das oligarquias representadas pelos governadores e seus amigos no Congresso.

Durante o ciclo getuliano, inspirado na filosofia cientificista que os castilhistas da segunda geração puseram em prática, o estamento burocrático identificou-se com os “Conselhos Técnicos Integrados à Administração” com que Getúlio Vargas e Lindolfo Collor acenavam na campanha presidencial de 1929. Recebia, assim, nosso patrimonialismo estamental uma tinta de modernização, no contexto dos ares saint-simonianos que inspiravam o ditador são-borjense.

No relativo ao “patrimonialismo parental”, evidentemente mais arcaico que o estamental por se restringir ao clã, nossos vizinhos hispano-americanos foram muito imaginosos ao elaborar formas diversas desse modelo. Manifestações do fenômeno foram, na Argentina, o “tango clientelista” dos casais Perón-Evita, Perón-Isabelita e Néstor-Cristina Kirchner. No Haiti de Papa Doc, a ditadura parental se deu ao redor do Papa e do Baby Doc. Para não falar da mais antiga ditadura das Américas, a cubana, que em 60 anos de vigência tem girado ao redor dos irmãos Fidel e Raúl Castro. Uma satrapia familística para petralha nenhum botar defeito.

Na Venezuela, o presidente Hugo Chávez criou original forma ectoplasmática de dominação parental com a dupla Bolívar-Chávez. (Lembremos que o finado coronel estava seguro de ter “incorporado” o espírito do Libertador, tendo sacramentado sua maluca intuição em cerimônia macabra em que foram desenterrados por “paliteiros” os restos de Bolívar, numa liturgia de vodu caribenho.) Na hilariante saga de imitações bregas em que o atual governo venezuelano se mostrou pródigo, o presidente Nicolás Maduro afirmou desde o início que governava em dupla com o chefe, que do além lhe falava através de um passarinho. Um “patrimonialismo ornitológico-parental” para morrer de rir!

A modalidade de “patrimonialismo parental” conta, aliás, com longa tradição na História do Ocidente, desde as monarquias por comodato dos irmãos que se casavam entre si, como ocorreu no seio da civilização helenística na dinastia Ptolomaica, no reino do Egito (ao longo dos séculos 2.º e 1.º anteriores à era cristã), ou nas renascentistas manobras do papa Alexandre VI (1431-1503), que não teve pejo em dividir o poder com os filhos César e Lucrécia Bórgia. Esta, diga-se de passagem, conseguiu pôr ordem na bagunça orçamentária que quase afundou a nau pontifícia graças à fome do Colégio de Cardeais, uma espécie de guloso PMDB da época. Versão menos aventureira e mais eficiente de “patrimonialismo parental” foi encarnada, na Espanha, ainda no século 15, pelos Reis Católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, que venceram definitivamente os sarracenos e conseguiram organizar a contento a burocracia do Estado.

O “patrimonialismo em comodato” da presidente Dilma fez com que ela abandonasse o modelo de “patrimonialismo estamental”, que funcionou em outras épocas e o PT tentou pôr em funcionamento neste segundo mandato. Um Ministério técnico, presidido pelo titular da pasta da Fazenda, que faria “o dever de casa” saneando as contas públicas, era a melhor saída. Mas o desarranjo institucional, potencializado pelas revelações escabrosas sobre os desmandos fiscais à luz da Operação Lava Jato, pelo julgamento das contas da gestão passada no Tribunal de Contas da União (TCU) e pela reabertura da questão do financiamento da reeleição pelo Tribunal Superior Eleitoral levaram a presidente a, atabalhoadamente, tentar fechar a sangria da sua impopularidade, agradando ao partido majoritário da base aliada na reforma ministerial. Num processo açodado, a mandatária passou informalmente a faixa ao chefe Lula e ao desgoverno parlamentar presidido pelo PMDB no Congresso.

A solução chega num momento inoportuno, quando a realidade exige o frio uso da razão para sanear as contas públicas e é necessário pulso firme para afinar o governo com as expectativas dos brasileiros. Os petralhas, liderados por Lula, decidiram peitar o TCU e foram esmagadoramente derrotados. A mudança no Ministério não agradou à opinião pública e a consequência nefasta é o agravamento da já precária situação econômica do País no plano internacional. O panorama não poderia ter ficado pior.

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