Daqui a algumas décadas – quando esses inícios do século 21 estiverem em definitivo no passado – é provável que nos lembremos deles como um “medievo de medo”. E sobre o medo diremos que corrói as relações sociais – e, com elas, todo o resto, qual cupim na madeira. Ainda não temos a dimensão exata do estrago da chamada sociedade apavorada, mas sabemos o bastante: cidades acuadas pela violência e por seus efeitos são cidades em que o conhecimento não é dividido, porque a convivência foi afetada na jugular. Ela decresce. Um punhado de pessoas que não têm nada em comum – fora dividir o mesmo território – outra coisa não é senão a negação do processo civilizatório.
De modo que o medo se tornou o maior dos nossos problemas. Os americanos de outras datas se deram conta disso. É o país do mundo em que mais se estuda a felicidade – e seus efeitos, inclusive, sobre a economia. E também onde mais investiga os efeitos nefastos do medo, e o atentado diário que esse fenômeno faz à geração de riquezas, com tudo o que demanda dessa palavra. Pensemos em estudos como o de Barry Glassner, autor de Cultura do medo.
É curioso o que acontece no Brasil. As principais cidades estão numa zona endêmica de violência, caso lhe sejam aplicados os critérios internacionais. Nossos dados são superlativos, mas a violência e seu filhote, o medo, estão longe de mobilizar a sociedade. O número de pesquisas é insuficiente. A sociedade organizada tem um discurso a respeito, mas tropeça na hora de agir.
A explicação é evidente – lamentamos, protestamos, mas continuamos achando, impotentes, que se trata apenas de uma incumbência do Estado. Muitos diriam que não poderia ser diferente. A violência alcançou tamanho grau que o homem comum só consegue responder com silêncio. É o que qualquer um faz quando se sente impotente. Mas já são horas de romper esse círculo do vício e provocar uma cultura de sociedade da justiça e da paz, como se dizia. Ou reagimos com uma agenda positiva, ou vamos nos empobrecer ao extremo, fazendo apostas torpes na sociedade vigiada. Cabe à sociedade organizada dizer “alto lá”.
A divulgação do 9.º Anuário Brasileiro de Segurança Pública – produzido com a base de dados dos governos estaduais – nos dá elementos para iniciar a conversa. Em um ano, aumentamos os índices de violência em 5%. Em vidas, é bastante. O número de mortos de 2014 foi de 58.559 pessoas – sendo as causas homicídios dolosos, lesões corporais seguidas de morte, latrocínio e ações policiais. O cálculo beira o surreal – uma morte a cada nove minutos e índices alarmantes de 28 mortes a cada 100 mil habitantes.
Vale fazer um recorte na estatística de latrocínio, mesmo não sendo a mais alarmante. Representa menos de 5% das mortes – um total de 2.061 vítimas, seguida de 773 feridos. O efeito de um latrocínio é cruel sobre o imaginário. A violência da rua passa à porta da sala. Na clássica oposição entre casa e rua explorada por Roberto DaMatta, enquanto a “rua” cabe ao Estado, a “casa” está sob nossa custódia. É ali que, nas nossas mais sinceras crenças, fazemos a nossa parte. Esse esforço é desprezado. Violar o espaço doméstico é praticamente permitido. Diz-se por aí que não há solução para esse tipo de infração e ao que acarreta. A dizer: cada furto e roubo é a possibilidade do homicídio e da lesão corporal. Ao saber que esse temor é desprezado pelo poder público, resta ao cidadão leiloar o que lhe sobrava de confiança nas forças de segurança.
Eis o ponto. O mundo da segurança pública se rendeu à sociedade do espetáculo. Está empavonado demais para se ocupar de “miudezas”. Todos os esforços são no sentido de reprimir o crime organizado e de “manchetear” a ideia de um Estado corajoso e providente. É claro que essas ações são urgentes e necessárias, mas há um flagrante descuido com a violência às pessoas comuns. Pura burrice. Essas pessoas poderiam se tornar agentes cidadãos de segurança pública, caso se sentissem assistidas pelas polícias. Ao negligenciar a atmosfera de medo provocada pelo roubo e furto – e como esses delitos sugerem a possibilidade do latrocínio –, o poder público outra coisa não faz senão empurrar parte da população para os braços da informalidade das pequenas milícias e para a indústria de cercas elétricas, câmeras e afins.
A população fica trancafiada, enquanto quem deveria ajudar a lidar com isso defende uma hierarquia na solução dos crimes, partindo da supremacia do crime organizado. Ora, difícil sustentar que não há um alto grau de profissionalização dos assaltos a carros e residências. São sofisticados, e não ladrões de ocasião.
Olheiros, pequenas redes de informação, “sociedades anônimas” podem não precisar de helicópteros para que sejam reprimidos, mas sua dissolução é urgente. Só assim para neutralizar as raízes do medo. Há um mal que se infiltra pelas calçadas, com potencial de ser tanto mal quanto o tráfico. Tomara que o futuro não nos conte mais essa verdade.
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