Não aguento mais. Intervenho. “Esta senhora não só é muito simpática, como fala um português muito correto.” A cliente trespassa-me com um olhar de ódio. “Isto não é português.” Reparo, então, que a funcionária olha para o chão, com os lábios trémulos. “É português e muito bem falado. Se a senhora não entende, o problema é seu. Acho que devia ir procurar outra loja”, disparo, num tom duro o suficiente para a fazer sair dali, murmurando-me impropérios.
“Peço desculpa”, diz-me a rapariga. Vejo-lhe as lágrimas a assomarem-lhe aos olhos. Sinto as faces a ruborescer. Mas faço um comício. “Eu é que lhe peço desculpa. Como portuguesa, sinto-me muito envergonhada. O que esta senhora fez é inaceitável. O seu português é muito bom e muito bonito. Está aqui a trabalhar e não há direito de virem aqui atacá-la desta forma.”
Tenho tido noites e dias terríveis, não durmo, fico bloqueado e apático. Vim miúdo, com 14 anos, de Cabo Verde e já não tenho lá ninguém ou quase ninguém. A situação é tão complicada que se não tenho espaço aqui, também não terei guarida lá, onde eles chamam ‘minha terra
Os meus filhos olham-me espantados, olhos muito abertos. Quando saímos, pergunto-lhes: “Perceberam o que aconteceu?” Estão confusos. Aproveito para lhes explicar que aquilo a que assistiram é “racismo”. Repetem a palavra, fazem perguntas, atentos e intrigados.
Quando chegam ao restaurante onde o pai nos aguarda, contam-lhe bem alto: “Vimos uma racista.” E explicam, de forma mais ou menos atabalhoada, a cena a que assistiram.
Este episódio passou-se há já bastante tempo, mas não o esqueceram. Volta e meia, quando ouve a palavra “racismo”, a minha filha mais velha conta o que viu, o mais pequeno acena com a cabeça.
Esta semana, tropecei por acaso num post de Instagram com vídeos de uma cena que parece decalcada da que vivi. Pelo sotaque da cliente, que não aparece na imagem, presumo que a situação se tenha passado no Norte. E a reação da lojista é mais firme do que aquela que presenciei no Chiado. Tudo o resto parece tirado do mesmo guião de ódio e necessidade de rebaixar quem é diferente, mesmo que quem é diferente esteja só a tentar fazer o seu trabalho o melhor possível, num país estrangeiro, muitas vezes de forma precária e mal paga, aceitando empregos que os nacionais desprezam. No final, sem que ninguém intervenha para defender a trabalhadora, a cliente pede o Livro de Reclamações e lá deixa por escrito o seu descontentamento firme por, imagine-se, ter sido atendida numa loja por alguém que fala o português com o sotaque doce do Brasil.
Dias antes, recebi uma mensagem no Instagram de um homem que não conheço e que me explicou ser cabo-verdiano, há muitos anos a viver em Portugal. Na véspera, a filha adulta que teve com a portuguesa com quem se casou foi parada na rua por uma pessoa que lhe falou em inglês. Obviamente, respondeu na mesma língua e foi então insultada pelo português de bem, que obviamente concluiu a cena mandando-a para a terra dela, sem perceber que ela está na sua terra. “Vivo aflito e com vergonha alheia. Tenho medo. Não confio nas forças de segurança”, diz o pai, depois de me explicar que trabalhou em Portugal durante 47 anos antes de se reformar e que as duas filhas são licenciadas, como que a reclamar para si uma dignidade que é sua por direito e não devia precisar de ser defendida com currículos e diplomas.
“Tenho tido noites e dias terríveis, não durmo, fico bloqueado e apático. Vim miúdo, com 14 anos, de Cabo Verde e já não tenho lá ninguém ou quase ninguém. A situação é tão complicada que se não tenho espaço aqui, também não terei guarida lá, onde eles chamam ‘minha terra’”, desabafa.
Nas últimas semanas, tenho recebido várias mensagens de brasileiros que me contam que estão a ponderar sair, por já não se sentirem bem-vindos ou pelas condições económicas se terem degradado, muito por causa do preço da habitação. Uma delas conheço bem. Chama-se Maria e é auxiliar no jardim de infância do meu filho.
A Maria sai de Portugal com as lágrimas nos olhos e o carinho e o respeito de todos quantos nestes anos lhe confiaram os seus filhos, sabendo do seu cuidado e da sua dedicação. A vaga que deixa na escola, diz-nos a experiência de quem tem assistido à dificuldade de recrutamento dos colégios no centro de Lisboa, não será fácil de preencher. E não é só (embora também seja) porque a Maria é uma grande profissional. É porque é cada vez mais difícil viver com os magros salários que por aqui se pagam, com os preços que tudo custa em Lisboa.
Até agora, muitas pessoas como a Maria têm ajudado a cuidar dos nossos filhos e pais, a construir e a limpar as nossas casas, a apanhar as nossas colheitas, a trazer-nos encomendas e comida e a transportar-nos ou a servir-nos em lojas, restaurantes e hotéis. As condições difíceis que aceitam são as mesmas a que nos sujeitámos (e sujeitamos ainda) em França, na Alemanha, na Suíça ou no Canadá.
Já se perguntaram: E se estas pessoas forem mesmo para a terra delas? O que é que nos acontece por cá?
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