domingo, 27 de julho de 2025

As palavras que nos faltam

Todos os dias nos deparamos com neologismos tecnológicos: algoritmo, metaverso, blockchain etc. A revolução tecnológica em curso sabe como apelidar as suas criações, ainda que raramente estas palavras sejam traduzidas, ou melhor, reinventadas, para a nossa língua. Instalam-se no nosso idioma, e no nosso pensamento, sempre em inglês, com a arrogância e a determinação dos colonos israelenses nos territórios ocupados.

Não obstante, creio que a turbulência que enfrentamos tem muito a ver com uma insidiosa crise lexical. Temos dificuldade em compreender os tempos atuais porque, antes de tudo, nos falta vocabulário. Como podemos produzir pensamento — filosofias, ensaios, teorias, explicações — se ainda nem sequer fomos capazes de inventar palavras capazes de exprimir as perplexidades, angústias, inquietações, e outros sentimentos esquivos e complexos, que, de repente, estamos experimentando, com a violência de quem toma um soco no nariz?

Como nomear os novos assombros éticos?

Não inventamos ainda uma palavra capaz de traduzir a dor, a repulsa, a indignação, o desespero — tudo isso junto — diante dos crimes abomináveis que Israel está cometendo em Gaza.

Que nome dar ao amplo movimento de retorno à barbárie que, com epicentro na Casa Branca, em Washington, vem alastrando por todo o mundo?

Que nome dar ao espanto agoniado, que é mais do que apenas espanto, ou apenas desgosto, com que assistimos à institucionalização da mentira, da vilania, da brutalidade em todas as suas múltiplas formas?

Que nome dar à específica “nostalgia da tortura”, manifestada em público por pessoas como Jair Bolsonaro?

Que nome dar ao sentimento de frustração, de tristeza, de incredulidade, que muitos de nós experimentam testemunhando o recuo dos ideais democráticos?

Há alguns anos chamávamos “desumanidade” a várias formas de barbárie, e essa única palavra cumpria a sua função — a de estarrecer as almas plácidas — com razoável sucesso. Entretanto, foi enfraquecendo. Adoeceu por excesso de trabalho, sendo convocada, a todo o momento, para enfeitar relatórios e noticiários. Não inquieta mais. Precisamos substituí-la por um outro termo, urgente como uma ambulância, afiado como uma adaga, e capaz de uivar sem perder o rigor.

Talvez tenhamos de resgatar profundos arcaísmos, cheirando a mofo e a sangue, que deixamos de usar, à medida que abandonávamos as gargalheiras, os polés, os troncos e os patíbulos. Palavras como estólido (do latim stolidus — obtuso, grosseiro. Muito usada no século XVIII), protervo, nefando, aleivado ou sátrapa. Todas elas se aplicam com justiça e propriedade a sujeitos como Donald Trump.

Quando a realidade se torna inconfiável, só a palavra — justa, exata, certeira — tem poder para a restaurar. Não havendo palavras adequadas, teremos de as inventar. A crueldade prospera no silêncio. A civilização — ou, pelo menos, a gentileza, a nobreza, a empatia — recomeçará através de uma língua reinventada, feroz e refulgente.
José Eduardo Agualusa

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