sábado, 14 de junho de 2025

'Colonialismo alimentar'

Quase um milhão de pessoas na África Ocidental e Meridional poderiam ser alimentadas semanalmente com porções dos peixes selvagens locais que hoje são capturados para a produção de ração de outras espécies criadas em cativeiro em países europeus. É o que revela o relatório "Ocean Takeover", divulgado nesta quinta-feira na terceira Conferência da ONU sobre os Oceanos (UNOC3), em Nice, pela ONG britânica Foodrise e a aliança grega Aktaia. O estudo mostra que a prática tem agravado ainda mais a situação precária das regiões, onde ao menos 77 milhões de pessoas enfrentam um quadro de insegurança alimentar, de acordo com a ONU.

Segundo o documento, a criação intensiva de espécies como o robalo e a dourada domina vastas áreas marinhas do Mediterrâneo, especialmente na Grécia — maior produtora da União Europeia e a segunda maior do mundo (atrás apenas da Turquia), com um crescimento de 141% desde o início dos anos 2000. Somente em 2022, o país produziu cerca de 137 mil toneladas de peixes de cativeiro, 92% sendo dessas duas espécies altamente consumidas na Europa.

Para alimentar esse modelo de indústria que se espalhou pela região, desde a Turquia até as Ilhas Canárias, utilizam-se grandes volumes de peixes pequenos de mar aberto, essenciais para a cadeia alimentar marinha e para a segurança alimentar de muitas comunidades costeiras, como sardinha, anchova, cavala e arenque, na produção de farelo e óleo de peixe (fishmeal and fish oil, ou FMFO).


As espécies são extraídas principalmente da costa do Senegal, da Mauritânia e da Gâmbia, e estima-se que até cinco quilos de peixes selvagens sejam necessários para alimentar apenas um quilo de peixe cultivado em cativeiro. Tal desequilíbrio contribui diretamente para o esgotamento das populações locais das espécies, afetando a pesca artesanal e a dieta de milhares de famílias, que já estão em situação vulnerável. Segundo dados da ONU, cerca de 77 milhões de pessoas enfrentam insegurança alimentar grave na África Ocidental e Meridional, com quase 50 milhões na primeira e aproximadamente 27 milhões na segunda região.

— O que estamos vendo como resultado do crescimento da aquicultura com ração é uma transferência de micronutrientes de países do Sul Global (onde uma parte significativa do FMFO é produzida) para países do Norte Global, mercados de alta renda, principalmente na Europa e América do Norte, mas cada vez mais também na Ásia (incluindo a China) — diz Natasha Hurley, diretora de campanhas da Foodrise.

Segundo o relatório, a aquicultura intensiva também gera sérios impactos ambientais. Os sistemas de criação confinam grandes quantidades de peixes em redes flutuantes, favorecendo a disseminação de poluentes, além da grande concentração de dejetos orgânicos e restos de ração, prejudicando a biodiversidade e ecossistemas já sensibilizados.

Contudo, apesar dos impactos ambientais e sociais, o setor recebe forte apoio financeiro da UE. A Grécia, por exemplo, deve receber 91 milhões de euros (R$ 578 milhões) do Fundo Europeu Marítimo, das Pescas e da Aquicultura (Feampa) para fomentar a expansão da aquicultura até 2027, enquanto a legislação local aumentou em 24 vezes as áreas permitidas para esse tipo de criação.

Além disso, em março deste ano, a Comissão Europeia lançou uma campanha para promover a criação de peixes, mariscos e algas como uma solução sustentável para a segurança alimentar. A iniciativa enfatiza o "enorme potencial" da aquicultura, nas palavras do eurodeputado Paulo do Nascimento Cabral, que também defendeu que "é preciso passar a mensagem aos europeus de que os produtos da aquicultura são seguros e também produzidos de forma sustentável" na Europa.

Para Hurley, no entanto, o atual modelo extrativista da aquicultura europeia representa uma forma contemporânea de "colonialismo alimentar", sendo impulsionado pelo lucro das empresas, e não por um real compromisso com a segurança alimentar global.

— A aquicultura intensiva tornou-se um grande negócio. Se as empresas estivessem realmente comprometidas com a segurança alimentar, não estariam cultivando salmão e robalo — diz Hurley.

A diretora defende ainda que a única forma de proteger os oceanos e as comunidades vulneráveis ao redor do mundo é impor uma "moratória imediata sobre novas fazendas industriais de peixes e o desmonte gradual das instalações existentes".

"As operações de aquicultura europeias estão, literalmente, tirando o pão da mesa dos africanos para encher estômagos europeus. Esse sistema extrativista precisa acabar, e devemos encontrar alternativas sustentáveis que priorizem a segurança alimentar local em vez do lucro com exportações", defendeu Aliou Ba, líder da campanha pelos oceanos do Greenpeace África, no documento.

— O mais revoltante é que todo esse peixe saqueado aqui nem sequer alimenta seres humanos: vai para a Europa e a Ásia engordar peixes de cativeiro — diz Mor Mbengue, presidente do comitê de pescas artesanais de Cayar, do Senegal. — É uma injustiça que não suportamos mais.

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