domingo, 18 de maio de 2025

O mundo de ponta-cabeça

Segunda-feira, dia 12, desembarcou em Washington o primeiro grupo de 59 sul-africanos bóeres, que Donald Trump decidiu acolher com estatuto de refugiados. Trump alega que os bóeres, no seu conjunto, estão sendo perseguidos na África do Sul por motivos raciais.

Na África do Sul, país com uma enorme riqueza étnica, e onde tal riqueza é valorizada e até mitificada, coexistem diversos grupos populacionais considerados brancos. Os bóeres são descendentes muito remotos dos primeiros colonos calvinistas de origem holandesa, francesa e escandinava que se estabeleceram no extremo sul da África, fugindo a perseguições religiosas.


Ao longo dos séculos, os bóeres misturaram-se com outros povos, africanos e malaios, criando a sua própria língua, o afrikaans, além de música, culinária e outras práticas culturais. Embora tenham combatido contra os colonos britânicos, os bóeres terminaram aliando-se a estes para fundar um regime de segregação racial, o apartheid, que se prolongou até 1994, e em larga medida os arrancou da pobreza. O apartheid dividiu as famílias bóeres, entre brancos e mestiços. Hoje, a comunidade considerada mestiça (“coloured”) fala afrikaans e partilha com os “bóeres brancos” os nomes de família. No fundo, à semelhança do que acontece com as famílias antigas brasileiras, não existe nenhum bóer que não possua alguma ancestralidade africana.

A comunidade considerada branca, que hoje representa apenas sete por cento da população total, mantém muitos dos privilégios — e toda a riqueza! — que possuía durante o apartheid. Concretamente, essa pequena minoria detém quase 80% das terras agrícolas privadas.

A decisão de Trump, expulsando ou cortando qualquer apoio a pessoas que realmente necessitam de refúgio, e acolhendo outras que não estão sendo hostilizadas, é um insulto exuberante aos direitos humanos, à inteligência e à sensatez, e a todos os generosos princípios cristãos. É o mundo de ponta-cabeça. O mundo de Trump.

Ebrahim Rasool, o embaixador sul-africano que Trump expulsou dos EUA, despertou a ira da direita selvagem americana, ao sugerir que o maior receio da mesma é que os brancos deixem de ser majoritários nos EUA. A atitude de Trump confirma esta ideia — brancos podem entrar, não-brancos têm de sair.

Na África do Sul, a notícia da chegada dos “refugiados sul-africanos” a Washington foi recebida ora com troça, ora com fúria. Alguns comentadores agradeceram a Trump por estar retirando do país os últimos racistas brancos.

A comunidade bóer divide-se entre a vergonha, a perplexidade e a consternação. Os bóeres ligados à extrema direita teriam preferido que Trump apoiasse a sua pretensão absurda de formar uma república independente. Os outros, aqueles que ainda acreditam no país do arco-íris sonhado por Nelson Mandela, mostram-se horrorizados. Sentem-se sul-africanos e não pensam em abandonar a sua pátria, a pátria dos seus ancestrais, embora, como todas as restantes comunidades, estejam desapontados com a forma como o ANC, partido que ocupa o poder desde 1994, vem liderando o país.

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