Talvez nada resuma de forma tão sintética os tempos que vivemos, como o momento em que Donald Trump, em 2016, após a vitória nas primárias do Nevada, afirmou: “Adoro os pouco instruídos” (“I love the poorly educated”). A multidão aplaudiu, incapaz de se sentir insultada.
E, no entanto, estamos todos progressivamente a perder a capacidade de ler textos complexos, de selecionar de forma crítica o verdadeiro do falso, de demonstrar empatia pelo outro.
O fenómeno não é novo, mas agudiza-se à medida que, diariamente, consumimos, mais de 34 gigabytes de informação (o equivalente a 100 mil palavras), consultamos os nossos telemóveis dezenas de vezes ao dia, e saltamos, entre ecrãs e dispositivos. Lemos, mas não retemos. Passamos os olhos no ecrã, em busca das palavras-chave – o princípio, o meio e o fim do texto – uma leitura em “F”, onde os argumentos, que nos permitem questionar e compreender, se perdem. Stanley Kubrick preocupava-se não com o facto de os computadores ficarem mais parecidos com o ser humano, mas o oposto… Hoje, quantas vezes nos sentimos um motor de busca a selecionar extratos de informação, para incluir num memorandum ou relatório?
Ficámos mais eficientes, mas mais frágeis na nossa capacidade de analisar de forma crítica a informação que nos chega. A informação, ao invés de nos dar conhecimento e poder, distrai-nos, entretém. Os nazis, pioneiros na propaganda, queimaram livros e distribuíram rádios a pilhas.
O meio digital contaminou a nossa forma de ler. Tornou-se mais difícil “ler profundamente” (deep reading como lhe chamam os neurologistas). Imergir no texto e, no processo, ser transportado para a realidade do autor, percorrer as ruas com as suas personagens, viver com elas as alegrias, angústias, vitórias e derrotas. Quando a história nos captura, é hoje mais provável ler como se de um filme se tratasse, acelerando para o final, do que vivenciar com a personagem os seus pensamentos e ações.
Podemos dizer que é apenas o sinal dos tempos, que verdadeiramente não altera as nossas capacidades, mas a neurociência já provou que não. O cérebro humano não está biologicamente programado para ler, como está, por exemplo, para aprender a falar ou ver. Aprender a ler é um processo complexo, que altera a estrutura do cérebro, obrigando a novas ligações entre sinapses e a reutilizar de forma diferente partes do cérebro biologicamente pré-programadas para outras tarefas. E saber ler não é o mesmo que ter um elevado nível de literacia. Tal envolve um esforço, que só o tempo e a atenção permitem e que só a persistência mantém. Hoje, parcelamos a nossa atenção, e, como tal, o tempo de concentração de que somos capazes tem vindo a diminuir.
Os estudos confirmam que os fatores ambientais estão a causar uma sociedade com défice de atenção. A somar ao stresse que sentimos, a nossa perda coletiva da capacidade de empatia, de compreender o outro e as razões que o movem. A neurociência demonstrou aquilo que sabíamos intuitivamente, quando lemos e relemos um livro que nos apela particularmente, o nosso cérebro e o nosso corpo vivem com a personagem as suas aventuras e desventuras, e isso transforma-nos como pessoas. Ler torna-nos mais humanos, porque vemos o mundo de muitas perspectivas, saímos da nossa realidade e somos capazes de compreender melhor aqueles que estão ao nosso lado, mas também os que habitam mundos, que sendo distantes do nosso, vimos todos os dias, na rua, no ecrã do telemóvel ou da televisão, mas que apelidamos de “outro”, “estrangeiro”, “imigrante”, “refugiado”. Retomar a leitura profunda exige esforço e tempo. Reeducar o cérebro. Mas quando, finalmente, aceitamos que já não somos o leitor que fomos na nossa adolescência – num tempo pré-smartphones –, estamos preparados para fazer o esforço, e lentamente recuperar o poder de viajar, sem sair de casa. Estamos também cognitivamente mais resilientes, individual e coletivamente, para resistir às investidas daqueles para quem os “pouco instruídos” são adoráveis…
Sofia Santos Machado

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