É com esse pano de fundo que assistiremos à volta ao poder de Donald Trump como 47º presidente dos Estados Unidos. Oportuno momento para relembrar um histórico comentário de 111 anos atrás, feito por Sir Edward Grey, à época chanceler do então ainda portentoso Império Britânico. Encostado à janela do palacete que abrigava seu gabinete, profetizou:
— As luzes estão se apagando por toda a Europa. Não voltaremos a vê-las acesas em nosso tempo.
Poucas horas depois, duas divisões do Exército alemão esmagavam a fronteira da Bélgica, dando início à Grande Guerra de 1914-1918, que engoliu cerca de 21,5 milhões de vidas (entre civis e militares). Grey sempre argumentara que a neutralidade não era uma opção viável diante do expansionismo alemão.
Não que o mundo vá acabar a partir de amanhã nas mãos de um triunfal Donald Trump. Mas a posse em Washington pode muito bem servir de data oficial para o fim de “um” mundo — aquele no qual vivíamos, frequentemente às turras, desde o final da Segunda Guerra. Ao complexo militar-industrial de ontem vem se juntar agora o domínio sem fronteiras do complexo tecnoindustrial, cujos plenos poderes ainda estão longe de serem mapeados. E ainda menos, cerceados. Eles lidam com a manipulação e o controle da verdade, este bem cada vez mais fugidio no nosso cotidiano.
Em sociedades decadentes, nas quais a população abre mão de exercer poder político, poder social, interesse cívico ou econômico (outro que o consumismo), a figura do líder de soluções simples parece redentora. Trump prometeu um retorno a uma mítica idade dourada da História americana, que, na realidade, jamais existiu, mas que habita o imaginário de dependentes de redes sociais. Também recebeu consentimento de seus eleitores para descartar grupos destoantes e indivíduos incômodos. Para muitos, inclusive democratas, parte das fulminantes mudanças anunciadas haverá de parecer necessária para desemperrar a ineficiência da máquina do Estado, enquanto a corrosão aos fundamentos do Estado Democrático de Direito permanecerá invisível por largo tempo.
A chacoalhada geral que se inicia encontra terreno fértil neste que já foi batizado de “século antissocial”. O termo — cunhado por Derek Thompson em ensaio na revista The Atlantic — aponta a dissolução da vida comunal pela tecnologia como o fator de maior mudança na sociedade americana no século XXI — uma solidão autoimposta, não a obrigatória dos tempos da Covid-19. Thompson retrata de vários ângulos quanto o cotidiano coletivo foi sendo substituído por “vivências delivery”. Em muitas lanchonetes e restaurantes do país, perdeu-se o contato humano, substituído pela impessoal retirada de pedidos feitos on-line. A socialização vem declinando em níveis que evocam as telas de Edward Hopper. Entre jovens de menos de 25 anos, o declínio de convívio interpessoal fora das redes sociais cresceu em 35%.
Ao contrário das outras espécies, ensina Pepe Mujica, a vida humana, pelo seu próprio desenvolvimento intelectual, permite que tenhamos a consciência de fazer escolhas, de dar um sentido ao viver.
— Sem objetivo, ou uma causa, a sociedade de mercado vai te enquadrar e vais passar o resto da vida pagando contas, pois és essencial para a mecânica do mercado — explicou em entrevista à BBC no ano passado. — Acabas confundindo o ser com o ter.
É nesse terreno fértil a experimentações que Donald Trump assume o poder. O mundo não merecia tamanho retrocesso civilizatório — a era de desagregação social em que vivemos já deveria ser castigo suficiente.
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