Referi a ideia de má ou boa sorte como algo que mata a capacidade empreendedora, como algo que consolida o espírito de vítima. Referi esse convite constante para pensarmos que, para melhorar o mundo, a única coisa que nos resta é pedir, lamentar e reclamar.
Faço uma outra confidência. A empresa em que trabalho abriu um concurso para jovens que fizessem inquéritos nos bairros de Maputo. Concorreram centenas de jovens e parecia claro que as duas dezenas que conseguiram o lugar o defenderiam com unhas e dentes.
Logo no primeiro ensaio, porém, uma meia dúzia se apresentou cheia de queixas e reivindicações: que não podiam trabalhar ao sol, que o trabalho era muito cansativo e necessitavam de mais repouso, que precisavam de um subsídio para comprar chapéus e sombreiros… Este espírito, meus amigos, é o de uma nação doente. Um país em que os jovens pedem antes de dar qualquer coisa, é um país que pode ter hipotecado o seu futuro.
O que eu noto é que, a par de uma abnegação ilimitada, nós sofremos ainda do complexo de que merecemos mais que os outros porque sofremos no passado. “A História está em dívida conosco”, é isso que pensamos. Mas a História está em dívida com todos e não paga a ninguém. Não houve povo que não sofresse, em algum momento, terríveis martírios e prejuízos. Nações inteiras foram reduzidas a escombros e renasceram por causa do trabalho e esforço de gerações. O nosso próprio país foi capaz de se afastar das cinzas da guerra. Invocar o passado para que se tenha pena de nós e ficar à espera que alguém nos compense é pura ilusão.
A lógica é, afinal, uma extensão do individual para o colectivo. Como sobrevivemos pessoalmente à custa de favores, pedimos ao mundo que nos conceda privilégios e compensações especiais. Esse posicionamento de vítimas a quem o mundo tem de pagar uma dívida sucede como nação e como cidadãos. A verdade é esta: nunca nos darão essas condições. Ou nós as conquistamos ou nunca chegaremos lá. O valor de Lurdes Mutola deriva de ela ter vencido todo um historial de dificuldades. Imaginemos que Lurdes Mutola, em lugar de treinar a sério, faria a exigência de partir uns metros à frente das suas adversárias, argumentando que era pobre e vinha de um país martirizado. Mesmo que ela ganhasse, a sua vitória deixaria de ter qualquer valor. O exemplo parece ridículo mas refere o exercício de coitadismo que praticamos vezes sem conta. A solução para o desfavorecido não é pedir favores. É lutar mais do que os outros. E lutar sobretudo por um mundo onde não seja preciso mais favores.
Um outro buraco nas nossas peúgas (este é um buraco do tamanho da própria peúga) é a nossa tendência para culpabilizar os outros pelos nossos próprios erros. Perdemos o emprego não porque faltamos consecutivamente sem justificação. Perdemos a namorada (ou namorado) não porque amamos pouco e mal. Reprovamos no exame, mas não foi nunca por falta de preparação. Esses deslizes são por nós explicados pela evocação de demônios cuja existência é profundamente cômoda. A construção de diabos é, afinal, um investimento a prazo: a nossa consciência pode dormir à sombra dessas ilusões.
Esta não é uma doença exclusivamente nossa. Nos dias de hoje, estamos assistindo a um dramático exemplo dessa fabricação de fantasmas: diariamente no Iraque se matam civis inocentes em nome de Deus, em nome da luta contra um demônio que são os outros, de outra crença. José Saramago disse: “Matar em nome de Deus faz desse Deus um assassino”.
E regressamos à questão da pessoa humana. Ao longo da História, as operações de agressão aos outros começam curiosamente por despessoalizar esses mesmos outros. Por assim dizer, esses — os inimigos — não são pessoas humanas como nós. A primeira operação na guerra dos Estados Unidos contra o Vietnã não foi de ordem militar. Foi de ordem psicológica e consistiu em desumanizar os vietnamitas. Eles já não eram humanos: eram “amarelos”, eram seres de outra natureza sobre os quais não haveria problema de ética em lançar bombas, o agente laranja e napalm.
O genocídio no Ruanda foi aqui perto e não muito distante no tempo.
Comunidades que conviviam em harmonia foram manipuladas por elites criminosas ao ponto de se ter cometido o maior massacre da História contemporânea. Se antes de 1994 perguntássemos a um tutsi ou a um hutu se acreditava que aquilo poderia acontecer no seu país eles declarariam que isso era inimaginável. Mas sucedeu. E sucedeu porque a capacidade de produzir demônios é ainda muito grande nos nossos países. Quanto mais pobre é um país maior é a capacidade de se destruir a si mesmo.
A partir de abril de 1994 e durante cem dias consecutivos mais de 800 mil tutsis foram assassinados pelos seus compatriotas hutus. Machados e catanas foram usados para chacinar 10 mil pessoas por dia, o que dá uma média de dez pessoas por minuto. Nunca na História humana se matou tanto em tão pouco tempo. Toda esta violência foi possível porque se tinha trabalhado para provar, uma vez mais, que os outros não eram pessoas humanas. O termo escolhido pela propaganda hutu para falar dos tutsis era cockroaches, baratas. A matança estava assim isenta de qualquer objecção moral, estava-se matando insectos e não pessoas humanas, compatriotas falando a mesma língua e vivendo a mesma cultura.
No vizinho Zimbábue, o discurso da unidade que marcou o início de uma sociedade multirracial foi, de súbito, alterado para uma agressão marcadamente racista. O vice-presidente do Zimbábue, Joseph Msika, num comício na cidade de Bulawayo disse textualmente: “Os brancos não são seres humanos”. Ele apenas estava repetindo o que Robert Mugabe já havia proclamado. E eu cito as palavras de Mugabe: “O que odiamos nos brancos não é a sua pele mas o demônio que emana deles”. Os dirigentes da Z anu tinham-se distinguido, poucos anos antes, como defensores de uma nação multirracial. O que tinha mudado? Mudara o jogo de forças. A ambição pelo poder provoca mudanças surpreendentes nas pessoas e nos partidos.
Estamos certos de que, em Moçambique, essas nuvens sombrias são distantes e pouco prováveis de alguma vez acontecerem. Esse é um motivo de orgulho no presente e de confiança no futuro. Mas esta certeza necessita de que não esqueçamos as lições de uma história que é também a nossa.
Pediram-me que falasse da pessoa humana. É um universo vasto, sem limites, do qual ninguém se pode dizer especialista. Fui forçado a escolher uma pequena parcela dessa tela infinita. Falei deste mal que é a demissão das nossas responsabilidades, da deserção das nossas capacidades. Falei da dependência de um modo de vida, em que tudo se consegue por favores, por cunhas e benesses. Falei de tudo isto porque o sistema bancário é profundamente vulnerável e permeável a este tipo de situações.
A nossa verdadeira questão enquanto nação é sermos capazes de produzir mais riqueza. Mas não confundirmos riqueza com dinheiro fácil. Certa vez fiz uma intervenção sobre essa obsessão de enriquecer rapidamente e de qualquer maneira. Fui atacado pelo argumento demagógico de que eu não queria ver moçambicanos ricos. Termino hoje reiterando aquilo que sempre defendi.
O meu anseio não é apenas ver moçambicanos ricos no verdadeiro sentido da palavra riqueza. O meu anseio é ver todos os moçambicanos partilhando de uma mesma riqueza. Só essa riqueza nos fará mais pessoas e mais humanos.
Mia Couto, Encontro sobre Pessoa Humana na Conferência no Millenium BIM (2008)
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