quarta-feira, 27 de março de 2024

A banalização da desconfiança

Temos uma extraordinária capacidade de banalizar a corrupção e a fraude, que admitimos como males, em paralelo com a esperteza como ato de sobrevivência e, talvez o mais venenoso: um ato de malandragem e realismo político! Disso resulta um relativismo moral insuportável, expresso no sábio conselho ou projeto segundo o qual o “levar vantagem em tudo” é programa permanente.

Vale fraudar um fraudador para impedir outro fraudador. O resultado desse realismo político particularista é o rebaixamento de ideais e programas, inibidos por dissidências pessoais. É uma mostra da velha oposição, até hoje mal resolvida, entre “Estado e governo”. Entre uma instituição identificada com valores nacionais e uma engrenagem administrativa marcada por interesses particulares e datados, passageiros. Essa tendência explica a perene tentação do golpe e o consequente protocolo legal destinado a anular punições.


Movido pela escolha “política” e malandra de não escolher, ou melhor, de relativizar escolhas, o sistema deseja e precisa de justiça, mas, ao mesmo tempo, relaciona a obediência ao “bom mocismo”, ao “bom menino que não faz xixi na cama”, ao “caxias” e, em muitas ocasiões, à mais pura e cega subordinação. E, quando ocorrem falcatruas na esfera da política vista como campo com pelo menos três lados, então a desconfiança está estabelecida.

A desconfiança é mortal numa democracia. Mortal porque a vida igualitária é árdua e depende de um compromisso sério com a impessoalidade para preservar a honradez dos elos pessoais. A passagem e a integração da casa com a rua são, no meu entender, críticas para a maturidade da igualdade democrática no Brasil. É preciso abrir a casa-grande para libertar a senzala.

As fraudes são praticadas pelo supremo magistrado da nação. Roubar tem consequências imediatas, enquanto “manipular” ou “maquiar” um orçamento estadual ou federal requer uma processualística reveladora de um sistema aristocrático embutido numa democracia republicana sofredora dessas ambiguidades e desconfianças.

Como os pecados, os delitos e as fraudes são, repito, graduados. Alguns são escandalosos; outros, gigantescos e sistematicamente lidos como meras espertezas. Como oportunidades que só um panaca deixaria passar sem aplicar sua “ética de malandragem”, sacralizada por Pedro Malasartes e elaborada por Macunaíma. Por exemplo: os presentes das Arábias dados ao chefe de Estado que, malandra e inocentemente, os embolsou com ajuda de seus secretários-asseclas. Não foi malícia ou crime, foi um trivial passo adiante exaltado por injustas perseguições.

O povo fica dividido quando o cidadão comum descobre que o supremo mandatário da nação esqueceu a pátria ao se recusar a dar o exemplo vacinando-se para conter uma pandemia e usou os seus recursos de poder para fraudar um certificado de vacinação para si próprio e a filha em palácio. Um pedaço entende que isso é “normal” para quem não deve entrar em fila; e um outro pede simplesmente a guilhotina. No fundo, o que está em jogo é uma reprimida igualdade em todo lugar e para todo mundo.

Uma coisa que desde criança me perturba e revolta é ver carros oficiais com batedores, espantando o povo-pedestre, que abre alas para não correr o risco de ser atropelado por sua própria culpa. Se havia batedores, e era uma autoridade, por que não saiu da frente? A sirene e os batedores são o “sabe com quem está falando?” dos que, eleitos por nós como servidores, apropriam-se dos cargos e invertem a cartilha democrática transformando o que é público em algo particular.

Bolsonaro banalizou a desconfiança. Fez quase tudo pelo avesso ou erraticamente. Como povo, estamos familiarizados com o populismo, com o messianismo, com o utopismo e com a malandragem que faz a esperta mediação entre as leis que devem valer para todos e suas dobras que as transformam em privilégios para quem manda ou tem um elo com o mandão. Mas ficamos atônitos com o gosto pela desconfiança que resulta quando legitimamos elos pessoais, esquecendo princípios que devem valer para todos.

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