sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

A cultura do celular e a morte do homem simples

O novo sujeito social e político da sociedade pós-moderna é simbolizado pelo telefone celular. Social porque a sociabilidade dos seres humanos dele depende cada vez mais. Político porque por meio dele a política deixou de se apoiar na mediação de ideias sobre o bem comum para se tornar um processo político mediado por uma coisa portátil. Um esvaziamento da política que a vem tornando um novo meio de dominação, o da mentira verossímil.

Portátil porque o usuário pode levá-lo no bolso. Mas, em vez de ser levado, é ele que leva o seu dono, dono que se tornou instrumento do objeto que usa, objeto de seu objeto.


Essa não é a única nem a mais significativa anomalia que mediatiza e demarca nossa situação social, que define os marcos de nossas condutas, que empobrece nossos horizontes, que engendra um modo social de ser em que não somos, nem pessoas nem cidadãos.

Claro que é impossível desconhecer a importância que o celular tem na vida cotidiana de todos nós. Já não podemos viver sem ele. Mas é ele, também, um dos instrumentos de um número significativo de invisibilidades desta sociedade. É por aí que somos dominados, amansados, enganados e induzidos a ser e fazer o que não queremos nem devemos.

A vacina defensiva contra ele é a consciência socialmente crítica, que não deve ser confundida com a polarização ideológica que dominou e domina a situação política brasileira. Com exceções notáveis, direita e esquerda criaram uma cumplicidade reprodutiva e imobilista no sentido de se tornarem reciprocamente úteis e necessárias. Criaram um sistema.

Historicamente, a sociedade se move para solucionar necessidades sociais conscientes, o que depende de busca de saída no objetivamente possível. O destino histórico da sociedade não sai do bolso do colete nem do militante nem do reacionário, nem do silêncio nem do berro. Daí só sai alienação e bloqueio.

O Brasil desse sistema de dominação é completamente falso.

A pós-modernidade tem o símbolo complementar no dedo indicador, que digita, mas não pensa. O cérebro já não tem prontidão para reconhecer diferenças sociais significativas e desafiadoras. As dos processos interativos que mobilizem o ser humano para que se humanize naquilo que faz e seja um construtor social da realidade.

Para confirmar o nome dos dedos de minha mão e escrever este comentário, levei menos de meio minuto e recebi de volta mais de 4 milhões de informações sobre “dedos da mão”. Para conferir o que eu já sabia.

Só que, diferente do que acontecia quando eu era criança e adolescente, em que eu colhia ideias na própria memória como colhia goiabas na goiabeira. E colhia apenas o que ia usar e comer. Na busca de uma única informação, o celular me permite colher milhões de informações inúteis em meio minuto, pelas quais eu pago.

O sistema econômico que dá sentido às funções desse instrumento se tornou um sistema produtivo de informações, mas improdutivo de realidades funcionais e mesmo materiais.

De famílias de lavradores caipiras e artesãos de fábricas, desde muito pequeno aprendi a fazer coisas úteis com minhas próprias mãos. Aos 7 anos de idade, eu já fazia meus próprios brinquedos. O primeiro presente de Natal, de que me lembro, foi um joguinho de ferramentas de carpinteiro, para criança, pois meu pai me queria carpinteiro, uma tradição de família.

Aquele brinquedo me fazia feliz. Meu celular e tudo que ele significa e pode não me fazem feliz. Eu clico na tecla para receber aquilo de que preciso e ele me traz de volta não só milhões de informações que não preciso. Mas milhões de informações que me privam das referências da consciência social e política e me dizem que o mundo em que vivo é um mundo de incerteza e perigo. Já não é um mundo de saber, esperança e alegria. O homem simples está morrendo.

A cultura do dedo indicador nos tira a alegria da dúvida criativa, o prazer de imaginar e da imaginação, ao nos tornar apenas instrumentos de um imaginário fabricado por algoritmos.

Algo pouco notado, ela libertou satanás das profundezas do inferno, o inimigo da nossa luta pelo bem, pela liberdade e pela esperança. Ela libertou o medo e o transformou num poder. Satanás tem mais presença nos púlpitos de igrejas do que o próprio Deus. Porque é em nome dele que Deus passou a existir. Os templos deixaram de ser o lugar do sagrado para ser apenas um lugar de refúgio. O mero lugar da espera apocalíptica, a negação do hoje e do atual em nome do quimérico e falso.

Ele não é um ser de fora do mundo. O deus pós-moderno é manipulador, dissimulado, satânico, que fala no bem para implantar o mal. Cuja missão é a de criar o novo sujeito social da nulificação da pessoa, a multidão sem rumo.

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