sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Resiliência democrática

2024 será o ano do eleitor. Mais de metade da população mundial, em mais de 60 países em todos os continentes, vai às urnas este ano. São mais de quatro mil milhões de eleitores a votar em eleições presidenciais, legislativas ou locais. Umas realizam-se em democracias liberais e serão livres e justas. Outras em regimes iliberais, com mais ou menos liberdade, mas sem igualdade na competição eleitoral entre governo e oposições. Outras, enfim, em regimes autocráticos serão uma farsa: destinam-se apenas a legitimar o regime e a única questão em jogo é quanto se aproxima o incumbente dos 100%.

Para o bem ou para o mal, as escolhas destes eleitores vão determinar não só o destino dos seus países, mas também o futuro da democracia e da ordem internacional. O paradoxo, porém, é que no momento em que o maior número de pessoas em todo o mundo vai exercer o acto por excelência da democracia — o voto — a democracia está ela própria sob ataque. Sob ataque dos regimes autocráticos, no exterior, e das derivas iliberais e populistas no interior.

Longe vai o tempo do triunfo da democracia liberal e da universalização da democracia como único regime internacionalmente legítimo. E das políticas de promoção da democracia. Hoje, a democracia liberal está em retrocesso e à defesa. O número de democracias no mundo, o número de pessoas que vivem em regime democrático e a qualidade da democracia, todos estes três indicadores, estão em declínio. No seu relatório de 2023, a Freedom House confirma que há 17 anos consecutivos se regista uma queda progressiva dos indicadores das liberdades cívicas e políticas. E o Instituto V-Dem da Universidade de Gotemburgo, no seu relatório de 2023, afirma que, pela primeira vez em duas décadas, há hoje no mundo mais autocracias fechadas do que democracias liberais. E que 72% da população mundial vive sob regimes autocráticos ou em autocratização.

É este o contexto em que se vai disputar o ano eleitoral mais global da história. E é por isso que a prémio Nobel Maria Ressa dizia que, no fim de 2024, “saberemos se a democracia vive ou morre”. Porque as eleições em 2024 serão um teste à resiliência democrática. Todas as eleições. Mas, certamente, umas mais do que outras. No campo das autocracias como das democracias.

Na China, a eleição estava feita e Xi Jinping foi eleito por unanimidade para um histórico terceiro mandato, que lhe garantirá, provavelmente, um mandato vitalício. Na Rússia, Putin concorre, em Março, para o seu quinto mandato e não enfrentará qualquer oposição real. Todos os opositores possíveis estão presos, exilados ou envenenados. A vitória é certa e a coroação imperial também.


Tudo se joga, pois, no campo das democracias. Na Europa sob o efeito da inflação, da imigração, da corrupção e da fadiga da Guerra na Ucrânia, a direita radical tem vindo a conquistar posição. Está no poder em Itália, na Eslováquia e na Hungria, onde Orbán se tornou o modelo do iliberalismo. Venceu na Holanda e cresce na oposição, em França, na Alemanha, na Áustria e, pasme-se, em Portugal.

Mais importantes, porém, serão, em Junho, as eleições para o Parlamento Europeu. Nacionalista, eurocéptica e populista, a extrema-direita reforçará, certamente, a sua posição. Não chegará para ameaçar a hegemonia tripartida de sociais-democratas, democratas-cristãos e liberais, mas será suficiente para bloquear decisões e condicionar a agenda política dos partidos do centro moderado.

Mas, claro, decisiva, será a eleição presidencial americana, em Novembro. E o risco para a democracia e a ordem internacional será um regresso de Trump. Na política interna, significaria o ataque à independência do poder judicial, a tentativa de controlo dos media, a instrumentalização do Departamento de Justiça para perseguir os adversários, a promiscuidade entre interesse público e interesses privados e o Estado ao serviço de fins pessoais. E, pior que isso, nenhuma garantia teríamos de que as eleições americanas seguintes fossem livres e justas.

Na política externa, regressaria o bilateralismo transaccional, a hostilidade aos aliados e o fascínio pelos ditadores. A primeira decisão seria o fim do apoio à Ucrânia. E uma vitória da Rússia na Ucrânia não deixaria de encorajar outras ambições territoriais, particularmente, em Taiwan. É isso que está em jogo nas próximas eleições americanas: a democracia e a ordem internacional. Claro que os americanos não vão votar num ditador. Mas, atenção, os alemães em 1933 também não pensavam que iam votar num ditador.

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