quarta-feira, 13 de julho de 2022

O detentor do poder

Um verdadeiro poder não pode ser construído exclusivamente sobre vitórias fáceis. O terror que ele quer despertar, e no qual está propriamente interessado, depende da massa de vítimas.


Todos os conquistadores famosos da história trilharam esse mesmo caminho. Posteriormente, foram-lhes atribuídas virtudes de toda espécie. Após séculos, historiadores ainda comparam conscientemente as qualidades de tais conquistadores, para — como acreditam — chegar a um juízo exato sobre eles. A ingenuidade fundamental dessa empreitada é palpável. De fato, estão ainda sob o fascínio de um poder de há muito ultrapassado. Assim, vivendo numa outra época, tornam-se contemporâneos daqueles que nela viveram, e algo do temor que estes sentiam ante a crueldade do poderoso acaba transferindo-se para eles; não sabem, porém, que se entregam a esses poderosos, enquanto observam honestamente os fatos. Soma-se a isso uma motivação mais nobre, da qual não estiveram livres nem mesmo grandes pensadores: é insuportável ter de afirmar que um número de seres humanos — cada um contendo em si o conjunto das possibilidades humanas — foi massacrado em vão, em prol de absolutamente nada; é por isso que então se passa a buscar um sentido para tais massacres.

Como a história prossegue, é sempre fácil encontrar um sentido aparente em sua continuidade: cuidando-se para que tal sentido receba uma certa dignidade. Aqui, porém, a verdade nada tem de dignidade. Ela é tão vergonhosa quanto foi aniquiladora. Trata-se exclusivamente de uma paixão privada do detentor do poder: seu prazer pela sobrevivência cresce com seu poder; este permite-lhe dar rédeas à sua paixão. O verdadeiro conteúdo desse poder é o desejo de sobreviver a massas de seres humanos.

É mais proveitoso para o detentor do poder se suas vítimas são inimigos; de qualquer modo, os amigos produzem resultado semelhante. Em nome de virtudes varonis, exigirá o mais difícil, o impossível, de seus súditos. Não lhe importa que estes sucumbam na execução da tarefa. É capaz de convencê-los de que é uma honra fazê-lo por ele. Através de rapinagens, cujo produto permite-lhes de início desfrutar, ele os ata a si. Servir-se-á então da voz de comando, a qual foi como que talhada para seus objetivos (não podemos, contudo, encetar aqui uma discussão detalhada dessa voz de comando, que é de extrema importância). É assim que, se entende do que faz, fará deles massas belicosas, incutindo-lhes ideias sobre a existência de tantos inimigos perigosos que, por fim, seus seguidores não poderão mais abandonar a massa de guerra que compõem. É claro que não lhes revela sua intenção mais profunda; sabe dissimular muito bem e, para tudo o que ordena, encontra centenas de pretextos convincentes. É possível que se traia, em sua arrogância, no círculo de amigos mais íntimos; mas, se assim for, o fará de forma radical, como fez Mussolini diante de Ciano, ao desdenhosamente chamar seu povo de rebanho, cuja vida, naturalmente, pouco importava.

Mas a real intenção de um verdadeiro detentor do poder é tão grotesca quanto inacreditável: ele quer ser o único. Quer sobreviver a todos, para que ninguém sobreviva a ele. Quer furtar-se à morte a todo custo; assim, não deve haver ninguém, absolutamente ninguém, que possa matá-lo. Jamais se sentirá seguro enquanto homens, quaisquer que sejam, continuarem existindo. Mesmo seu corpo de guarda, que o protege dos inimigos, pode voltar-se contra ele. Não é difícil provar que sempre teme secretamente aqueles a quem dá ordens. Sempre o assalta, também, o medo dos que lhe estão mais próximos.
Elias Canetti, "A consciência das palavras"

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