quarta-feira, 15 de junho de 2022

O faminto

Era uma vez um faminto. Passando um dia diante de uma morada singularmente grande, ele se dirigiu às pessoas que se aglomeravam nos degraus da escadaria, perguntando a quem pertencia aquele palácio. “A um rei dos povos, o mais poderoso do Universo” responderam. O faminto foi então até os guardiães postados no pórtico de entrada e pediu uma esmola em nome de Deus. “Donde vens tu?” perguntaram os guardiães, “então não sabes que basta te apresentares ao nosso amo e senhor para teres tudo quanto desejas?” Animado pela resposta, o faminto, embora um tanto ressabiado, transpôs o pórtico, atravessou o pátio espaçoso que se seguia à entrada, assim como o jardim sombreado de vigorosas árvores, e logo alcançou o interior do palácio, passando de aposento em aposento, todos grandes, de paredes muito altas, mas despojados de qualquer mobília; sem se deixar perder no labirinto daquela estranha moradia, ele acabou por chegar a uma ampla sala revestida de azulejos decorados com desenhos de flores e folhagens que compunham agradavelmente com a enorme taça de alabastro plantada no meio da peça, de onde jorrava água fresca e docemente rumorejante; um tapete de veludo bordado com arabescos cobria parte desta sala, onde, recostado em almofadas, estava sentado um ancião de suaves barbas brancas, a face iluminada por um sorriso benigno. O faminto avançou para o ancião de barbas formosas, saudando-o: “Que a paz esteja contigo!” “E contigo a paz, a misericórdia e as bênçãos de Deus!” respondeu o ancião inclinando ligeiramente a fronte. “Que desejas, pobre homem?” “Ó meu senhor e amo, peço-te uma esmola em nome de Deus, pois estou tão necessitado a ponto de cair de fome.” “Por Deus!” exclamou o ancião “é possível que eu esteja numa cidade onde um ser humano tenha fome como dizes? É intolerável!” “Que Deus te abençoe e abençoada seja tua santa mãe” disse o faminto em reconhecimento aos sentimentos do ancião. “Fica aqui, pobre homem, quero repartir contigo o pão e que te sirvas do sal da minha mesa.” E logo o ancião bateu palmas e ao jovem serviçal que se apresentou ordenou que trouxesse o gomil com a bacia. E disse pouco depois para o faminto: “Hóspede amigo, chega-te mais perto e lava as mãos”. E o próprio ancião levantou-se, dobrou o corpo para a frente, e fez com nobreza o gesto de esfregar as mãos debaixo da água que era supostamente derramada de um gomil invisível. O faminto ficou sem saber o que pensar da encenação que seus olhos viam e, como o ancião insistisse, ele deu dois passos e fez também de conta que lavava as mãos. “Ponham a toalha. Depressa!” ordenou o ancião aos servidores “e não demorem em trazer-nos o que comer, que este pobre homem está quase a desfalecer de fome.” Vários servos começaram a ir e vir, como se pusessem a mesa e a cobrissem com numerosos pratos. O faminto, dobrando-se de dor, pensou com seus botões que os pobres deviam mostrar muita paciência diante dos caprichos dos poderosos, abstendo-se por isso de dar mostras de irritação. “Senta-te a meu lado” disse o ancião “e trata de honrar a minha mesa.” “Ouço e obedeço” disse o faminto sentando-se no tapete ao lado do ancião, frente à mesa imaginária. “Senhor meu hóspede, minha casa é a tua casa e minha mesa é a tua mesa. Não faças cerimônia, come enquanto estiveres no apetite.” E como o ancião o estimulasse a acompanhá-lo, o faminto não se fez esperar, logo simulando também tocar nos supostos pratos, espetar bons nacos, e, movendo o queixo, mastigar e engolir a comida inexistente. “Que me dizes deste pão?” perguntou o ancião. “Este pão é bem alvo e muito bom, nunca na vida comi outro que mais me soubesse” respondeu prontamente o faminto, sem forçar sua gentileza. “Que prazer tu me dás, ó senhor meu hóspede! Mas penso que não mereço esses elogios, senão que dirás tu das iguarias que estão à tua esquerda, este assado com recheio de arroz e amêndoas, este peixe em molho de gergelim, ou estas costelas de carneiro! E que dirás do aroma?” “O aroma é embriagador tanto quanto o aspecto e o paladar divinos.” “Não posso deixar de reconhecer que o senhor meu hóspede está animado da maior indulgência para com a minha mesa, por isso mesmo vais provar agora da minha própria mão um bocado incomparável” disse o ancião, simulando tirar entre as pontas dos dedos um bocado da travessa e chegá-lo aos lábios do faminto, dizendo: “Deves mastigar bem!”. O faminto estendeu os lábios para que o bocado lhe fosse introduzido na boca, mastigando-o bastante em seguida, fechando até os olhos de deleite para dar maior realidade à sua representação: “Excelente!” exclamou em acabamento. “Ó meu hóspede amigo, pelo modo como falas bem se vê que és pessoa de gosto, habituado a comer à mesa de príncipes e de grandes; come mais, e que te faça bom proveito.” “Estou satisfeito, já provei de todos os pratos, não posso mais” disse o faminto sorrindo em agradecimento, e mal contendo as dores da sua terrível fome. O ancião então bateu palmas e quando vieram os servos disse: “Podem trazer a sobremesa”. Os jovens servos romperam numa azáfama, agitando os braços em gestos variados e com certo ritmo, depois de tantos outros rápidos e precisos que significavam levantar uma toalha e pôr outra, embora nada fosse mudado. Finalmente o ancião ergueu a mão e eles se retiraram. “Dulcifiquemo­-nos” disse o ancião com algum preciosismo “vamos aos doces: esta torta empolada de nozes e romãs, com certo ar épico, parece muito capaz de nos tentar. Prova um bocado, hóspede amigo, é em tua honra que ela há de ser partida. Tens aqui a calda almiscarada, talvez queiras mesmo polvilhá-la... Come, come, não faças cerimônia.” E o ancião dava o exemplo, imolando colherada sobre colherada, com apetite e requinte, numa encenação tão perfeita, como se saboreasse uma torta de verdade. E o faminto o imitava com arte, embora a fome mais do que nunca lhe contraísse o estômago. “Geleias? Frutas? Tens aqui tâmaras secas, tâmaras em licor, passas... De que é que mais gostas? Por mim prefiro a fruta seca à fruta preparada pelo confeiteiro, não se perdeu o sabor nativo. Tens de provar também esses figos acabados de colher da árvore. Não? E os pêssegos? Talvez prefiras ameixas... Tens aqui, come, come, Deus é clemente com os humanos!” O faminto, que à força de mastigar em falso tinha a boca e a língua e os maxilares cansados, ao passo que o estômago lhe gritava cada vez mais alto, respondeu à insistência continuada do ancião: “Estou satisfeito, senhor, não quero mais nada!”. “É estranho! Pela fome que te trouxe até aqui, hóspede amigo, admira que te saciasses tão depressa; de qualquer forma, foi uma honra dividir minha mesa contigo. Mas ainda não bebemos...” disse o ancião com um leve traço de zomba lhe percorrendo os lábios, e logo bateu palmas e a esse sinal acorreram adolescentes de braços graciosos em suas túnicas claras, e simularam levantar a toalha, pôr outra, e plantar em cima taças e copos de toda a ordem. E o anfitrião, encenando sempre, encheu as taças, oferecendo uma ao faminto que a recebeu com vênia amável, levando-a em seguida aos lábios: “Que vinho sublime!” exclamou ele fechando de novo os olhos e estalando a língua. E mais vinho foi derramado nas taças, e outros supostos vinhos foram trazidos, de muitas espécies e sabores. Um e outro entremeavam a consumação, entregando-se ao jogo instável dos embriagados, pendulando lentamente a cabeça e o meio-corpo, além de muitos outros trejeitos, até que todas as garrafas fossem provadas. E depois de ter deitado tanto vinho nos copos, o ancião interrompeu subitamente a falsa bebedeira, e, assumindo sua antiga simplicidade, a fisionomia de repente austera, falou com sobriedade ao faminto com quem dividira imaginariamente sua mesa: “Finalmente, à força de procurar muito pelo mundo todo, acabei por encontrar um homem que tem o espírito forte, o caráter firme, e que, sobretudo, revelou possuir a maior das virtudes de que um homem é capaz: a paciência. Por tuas qualidades raras, passas doravante a morar nesta casa tão grande e tão despojada de habitantes, e está certo de que alimento não te há de faltar à mesa”. E naquele mesmo instante trouxeram pão, um pão robusto e verdadeiro, e o faminto, graças à sua paciência, nunca mais soube o que era fome.


(Como podia o homem que tem o pão na mesa, o sal para salgar, a carne e o vinho, contar a história de um faminto? como podia o pai, Pedro, ter omitido tanto nas tantas vezes que contou aquela história oriental? terminava confusamente o encontro entre o ancião e o faminto, mas era com essa confusão terapêutica que o pai deveria ter narrado a história que ele mais contou nos seus sermões; o soberano mais poderoso do Universo confessava de fato que acabara de encontrar, à custa de muito procurar, o homem de espírito forte, caráter firme e que, sobretudo, tinha revelado possuir a virtude mais rara de que um ser humano é capaz: a paciência; antes porém que esse elogio fosse proferido, o faminto — com a força surpreendente e descomunal da sua fome, desfechara um murro violento contra o ancião de barbas brancas e formosas, explicando-se diante de sua indignação: “Senhor meu e louro da minha fronte, bem sabes que sou o teu escravo, o teu escravo submisso, o homem que recebeste à tua mesa e a quem banqueteaste com iguarias dignas do maior rei, e a quem por fim mataste a sede com numerosos vinhos velhos. Que queres, senhor, o espírito do vinho subiu-me à cabeça e não posso responder pelo que fiz quando ergui a mão contra o meu benfeitor”.)
Raduan Nassar, "Lavoura Arcaica"

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