quarta-feira, 15 de junho de 2022

Enquanto corria a barca de Niterói para o Rio

Em memória de Moraes Moreira e para Edson Nunes

 Andei muito de bicicleta, bonde, ônibus, trem e — acreditem — cavalo e mula, mas, acima de tudo, de barca.

A barca com duas frentes (ferryboat) que ligava Niterói ao Rio, mas que nós, niteroienses, concebíamos mais como nos ligando ao Rio de Janeiro, que era a capital da República.

“Pegar a barca para o Rio” era visitar o melhor do Brasil. Voltar para Niterói era retornar ao lado pequeno da Cidade Maravilhosa.

Ir ao Rio e voltar a Niterói salientava a emoção entre o “estar em casa” e o “sair de casa” e esperar inseguro uma condução.

A antiga divisão central entre os espaços de senhores e escravos — ambos, porém, submetidos a um sistema do mais ou menos nobre — fez com que a rua e seus pontos de mobilidade, as “paradas” de bonde e ônibus e a estação das barcas, no caso niteroiense, fossem — como continuam sendo — lugares de ansiedade.


Quando fui ao Rio sozinho pela primeira vez, recebi uma bíblia de conselhos relativos aos perigos dos espaços abertos onde não se é conhecido. Neles, “tudo pode acontecer” e “se pode encontrar qualquer um”. Em espaços de extremado anonimato e sem saber quem é quem, corre-se o risco da “falta de educação” ou de coisa muito pior. E depois ficamos espantados com o “você sabe com quem está falando?” e as balas perdidas...

No caso das barcas, um comportamento tipo “salve-se quem puder” era rotineiro quando os portões se abriam. Havia uma corrida para a barca, cuja fila existia apenas na compra da passagem. Lembro-me da sofreguidão para encontrar lugar em barcas muitas vezes vazias.

O traço distintivo de ir ao Rio era que a cidade só permitia por mar a passagem entre casa e rua, entre o mundo gratuito da casa e o universo do trabalho da rua. Não havia meios alternativos, e a dependência da barca era total, o que fazia com que a distância Niterói-Rio fosse social e simbolicamente acentuada.

Felizmente, foram tempos passados. Hoje, os engarrafamentos da Ponte e a infernal ausência de transporte público tornaram tudo pior.

Todos esses gargalos provocaram uma revolta que muitos pensaram ser o estopim de uma revolução nessa então ansiosa, mas pacata, estação das barcas da Praça Arariboia de Niterói.

Num estudo clássico de Edson Nunes, “A Revolta das Barcas: populismo, violência e conflito político” (que tive o prazer de prefaciar), revela-se detalhadamente como esse local de passagem transformou-se em praça de guerra na manhã de sexta-feira, dia 22 de maio de 1959.

Notei uma aglomeração naquele dia ao descer do ônibus de Icaraí que me levou às “barcas” — de onde eu seguiria de lotação para a Cancela (São Cristóvão), cruzando a pé a Quinta da Boa Vista para o Museu Nacional (que pegou fogo), onde, na então Divisão de Antropologia, eu iniciava um estágio com os professores Castro Faria e Roberto Cardoso de Oliveira. Imediatamente me avisaram que havia uma greve, e estavam faltando barcas para o transporte regular dos milhares de passageiros. Voltei para casa e segui como pude a rebelião.

Rebelião que muitos esperavam fosse o estopim de uma revolução socialista, e outros tomavam como mera rebeldia e abuso “do povo”, incentivado por “elementos políticos” estranhos ao espírito nacional.

Foi esse evento violento — um “quebra-quebra” — que Edson Nunes revela como sendo tecido, além do perene problema do transporte urbano, por forças políticas que envolviam sindicatos grevistas e governantes. Estes, pertencendo a coligações partidárias com ideologias opostas, tiveram que assistir, abafar e resolver.

O estudo revela como essa ambiguidade promoveu uma paralisação que culminou na estatização dos serviços e num ataque, com laivos de uma inversão carnavalesca, à residência dos proprietários das barcas. Depois de infindáveis reuniões, os órgãos oficiais restabeleceram esse serviço essencial e exclusivo. Depois da revolta em que todos ganharam, menos o usuário-cidadão — o povo —, esse eterno perdedor no Brasil. 
Roberto DaMatta

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