terça-feira, 31 de maio de 2022

Graciliano Ramos analisa o bolsonarismo

Em 1937, depois de passar dez meses e dez dias na prisão e quase morrer, Graciliano Ramos foi solto: "Não sinto o meu corpo". Assim começa "Em Liberdade", de Silviano Santiago, publicado pela primeira vez em 1981 e que está de volta às livrarias. Uma obra inclassificável —ficção, autobiografia, relato histórico, ensaio, pastiche—, que tem o dom (ou a desgraça) da atualidade eterna.

O Brasil que Graciliano encontrou ao deixar o presídio da Ilha Grande às vésperas da instauração do Estado Novo, o de Silviano enquanto escrevia o livro ainda no período da ditadura militar e o de agora, com Bolsonaro e seus generais conspirando para dar um golpe durante as eleições, revelam quão frágil é a nossa realidade democrática.


"Em Liberdade" é um falso diário íntimo, que cobre dois meses da nova vida fora das grades. O leitor acompanha o romancista alagoano na casa do amigo José Lins do Rego, jantando bife à milanesa no Lamas, morando numa pensão do Catete, ganhando o sustento com frilas, seguindo uma garota na praia de Botafogo e tendo de esconder a ereção.

Silviano escreve como se psicografasse, Chico Xavier recebendo Graciliano. Para conseguir o efeito mediúnico, antes de iniciar o livro tirou seis meses para imitar o estilo seco, castiço e límpido do mestre. Eis o resultado:

"Todos e cada um acreditam-se idênticos na miséria, na dor e no sofrimento, isto é: desgraçados todos, mas quem narra é sempre o mais desgraçado dos mortais. Por isso as pessoas são pouco tolerantes diante da miséria alheia. (...) Já a linguagem do prazer é original. Putaria, política e futebol –isso as pessoas escutam. Com o gozo nos olhos e nos lábios, acrescentam: é um brasileiro da gema".

Talvez o desabafo de Graciliano (ou de Gracilviano) explique por que Bolsonaro, segundo o Datafolha, tenha apenas 54% de rejeição entre os eleitores —fora o grupo de fanáticos que aprova a putaria.

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