O Papa Francisco não se cansa de clamar contra a guerra e apelar à paz: “Em nome de Deus peço-vos : parem este massacre!” “Um massacre sem sentido” e de “uma crueldade inumana e blasfema”. Por ocasião da celebração da Páscoa ortodoxa, no fim de semana passado, ele, a ONU, o Conselho Mundial das Igrejas apelaram a um cessar-fogo, também para abrir a possibilidade de corredores humanitários, mas não foram ouvidos. Quero sublinhar que, atendendo às celebrações pascais, o arcebispo de Munique, cardeal Reinhard Marx, foi particularmente duro na saudação pascal. Chamou “perversos” aos líderes religiosos que, como o Patriarca de Moscovo, Kirill, apoiam a guerra na Ucrânia, lamentou que ao longo da História “os cristãos tenham usado a violência sob o sinal da cruz”, algo que se repete hoje “na guerra actual, com cristãos baptizados a matar outros cristãos e recebendo o apoio de líderes das suas Igrejas”. A Igreja “deve erguer-se como um lugar de não violência, e a cruz como sinal da violência sofrida e superada.” Chamou “ditador” a Putin: “a Páscoa é a rebelião de Deus contra todas as forças da violência e da morte. A vitória da vida sobre a morte não pode ser detida, nem sequer com as armas de Putin e outros ditadores”.
Francisco confessa numa entrevista a “La Nación” que “está disposto a fazer tudo para deter a guerra — o Vaticano nunca descansa” — e acaba de publicar um livro precisamente com o título Contra a guerra. A coragem de construir a paz. Ficam aí algumas ideias fundamentais, a partir de Religión Digital.
Começa por lembrar como há um ano, na sua peregrinação ao martirizado Iraque, pôde constatar directamente o desastre causado pela guerra, a violência fratricida, o terrorismo, viu os escombros dos edifícios e as feridas dos corações. Também viu sementes de esperança. E “nunca teria imaginado que um ano depois rebentaria um conflito na Europa.”
Referi aqui muitas vezes que desde o início do seu pontificado, Francisco falou da Terceira Guerra Mundial em curso, mas “aos pedaços, por partes”. O que é facto é que essas partes se foram tornando cada vez maiores e ligando-se entre si. Neste momento há muitas guerras espalhadas pelo mundo, que causam “imensa dor, vítimas inocentes, especialmente crianças”, milhões de pessoas obrigadas a deixar a sua terra, as suas casas, as suas cidades destruídas. Mas essas guerras esquecemo-las, pois andamos distraídos e elas passam-se longe. “Até que, de repente, a guerra rebentou perto de nós. A Ucrânia foi atacada e invadida. E, no conflito, os mais atingidos são, desgraçadamente, muitos civis inocentes, muitas mulheres, muitas crianças e muitos idosos”, obrigados a viver em bunkers para proteger-se das bombas ou com as famílias separadas, pois, enquanto as mães e as avós atravessam fronteiras à procura de refúgio, os maridos, pais e avós ficam para combater.
Perante as imagens terríveis de horror que nos chegam todos os dias, “não podemos fazer outra coisa que não seja gritar: ‘Parem!’ A guerra não é a solução, a guerra é uma loucura, a guerra é um monstro, a guerra é um cancro que se autoalimenta devorando tudo. Mais: a guerra é um sacrilégio, que causa estragos no mais precioso que há sobre a terra: a vida humana, a inocência dos mais pequenos, a beleza da criação.” “Sim, a guerra é um sacrilégio”.
Pela enésima vez estamos perante a barbárie, porque perdemos a memória: esquecemos a História, esquecemos o que nos disseram os nossos avós, os nossos pais. “Se tivéssemos memória, não gastaríamos dezenas, centenas de milhares de milhões para nos equiparmos com armamentos cada vez mais sofisticados, para aumentar o mercado e o tráfico de armas que acabam por matar crianças, mulheres, anciãos. 1981 mil milhões de dólares por ano, segundo os cálculos de um importante centro de investigação de Estocolmo.”
Se tivéssemos memória, “saberíamos que a guerra, antes de chegar à frente de combate, tem de ser parada nos corações. É necessário o diálogo, a negociação, a escuta, a habilidade e criatividade diplomática, uma política com visão de futuro capaz de construir um novo sistema de convivência que já não se baseie nas armas, no poder das armas, na dissuasão.” Toda a guerra “representa não só uma derrota da política, mas também uma vergonhosa rendição perante as forças do mal.”
Acrescenta: em 2019, em Hiroshima, “cidade símbolo da Segunda Guerra Mundial, cujos habitantes foram massacrados, com os de Nagasaki, pelas bombas nucleares, reafirmei que o uso da energia atómica com fins bélicos é, hoje mais do que nunca, um crime. O uso da energia atómica com fins bélicos é imoral, como o é a posse de armas atómicas. Quem podia imaginar que menos de três anos depois, o espectro da guerra nuclear pairaria sobre a Europa? Assim, passo a passo, avançamos para a catástrofe. Pouco a pouco, o mundo corre o risco de transformar-se no cenário de uma única Terceira Guerra Mundial. Avançamos para ela como se fosse inelutável. Pelo contrário, devemos, todos juntos, repetir, com força: ‘Não, não é inelutável’. A guerra não é inelutável!”
Anselmo Borges, Diário de Notícias (Lisboa)
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