terça-feira, 22 de março de 2022

Sérgio Porto teria que multiplicar Festival de Besteira para dar conta de governo Bolsonaro

Stanislaw Ponte Preta, heterônimo de Sérgio Porto, fustigou as arbitrariedades e a estupidez da ditadura militar em seu célebre Festival de Besteira que Assola o País, sucesso na imprensa e em livros nos anos 1960. Estivesse vivo, o escritor estaria mais atarefado que nunca nesses tempos bolsonaristas.

Se dependesse de Sérgio Porto, a "sua" Copacabana —onde ficavam a casa na rua Leopoldo Miguez em que nasceu e cresceu e muitas pensões para jovens— jamais mudaria. Não teve jeito: a casa da infância foi demolida para a construção de um edifício, mesmo destino das pensões alegres na orla da praia.

Durante o dia, Sérgio trabalhava no Banco do Brasil. Como cronista da noite, usava terno e gravata, sapatos lustrosos. Nas peladas da praia, pegava no gol, e seus cabelos castanhos claros sempre estavam aparados e alinhados. O melhor jazz era o de Nova Orleans; o melhor samba, o tradicional (ainda não se dizia "de raiz").

Nascido há quase cem anos, em janeiro de 1923, homem do seu tempo, gentil, inteligente e espirituoso, aos olhos de muita gente ele era um conservador —na antiga acepção da palavra, não um "conservador" como conhecemos hoje nas mídias sociais—, cujo comportamento em nada lembrava o anarquismo de Stanislaw Ponte Preta, seu famoso heterônimo. Até que veio o golpe militar de 1964.

Na verdade, Sérgio Porto era um democrata, a quem aquela história de consertar o Brasil e acabar com o comunismo, botando tanques na rua para assumir o poder, não cheirava nada bem.

Com um general na Presidência, o próprio Stanislaw mudaria de tom e conversa, não abandonando as crônicas e anedotas de humor nem seu alvo preferido de antes, a classe ociosa das colunas sociais, mas passando a castigar os novos modos e costumes da "redentora", como ele costumava se referir ao regime recém-implantado.

No mesmo ano de 1964, Stanislaw Ponte Preta publica "Garoto Linha Dura", título que já alude ao ambiente pesado do país, sobretudo à perseguição política, censura e deduragem. "Escolhi para título a história do garotinho que se deixou influenciar pelo mais recente método de democratização posto em prática no Brasil", explica o autor na nota que abre a coletânea.

Pedrinho, o tal garoto linha-dura, para fugir do castigo por ter quebrado uma vidraça jogando futebol na rua, entrega um colega e diz ao pai: "Esse menino do vizinho é um subversivo desgraçado. Não pergunta nada a ele não. Quando ele vier atender a porta, o senhor vai logo tacando a mão nele".

O texto "Militarização" fecha a antologia. Nele, um homem sonha que não existe mais emprego ou ocupação para civis no país. Era um pesadelo, mas ele acorda gargalhando, e a mulher pergunta o motivo: "É que, no sonho, eu passei em frente de uma boate e tinha um cartaz na porta escrito: ‘Hoje sensacional strip-tease com o major Pereira’".


Atuando na imprensa desde 1947 —fez de tudo, da crítica musical a colunas em que selecionava mulheres de maiô, as "certinhas"—, Sérgio Porto preservou a alma de repórter. Algumas de suas melhores crônicas são flagrantes tirados da rua. Daí ter retratado tão bem aquele tempo brasileiro atropelado a uma só vez pela modernidade e pelo atraso. Sem falar nas besteiras.

O Febeapá (Festival de Besteira que Assola o País) surgiu nas páginas da Última Hora de Samuel Wainer, principal vitrine de Stanislaw Ponte Preta. Alimentado pelos leitores que enviavam recortes de jornais e atualizado diariamente, reuniu as façanhas de políticos, militares, funcionários públicos e demais "cocorocas" que gravitavam em torno do poder. A rigor era um relatório, com pequenas histórias absurdas. Hoje, é história do Brasil.

O material publicado em jornal foi depois agrupado em livro em três volumes (1966, 1967 e 1968), também com o título "Febeapá". A mais recente edição, da Companhia das Letras, reuniu todas as crônicas em um só volume.

Historiador honesto, Stanislaw não sabia precisar o dia em que tudo começou: "Notei o alastramento do Festival de Besteira depois que uma inspetora de ensino no interior de São Paulo, portanto uma senhora de um nível intelectual mais elevado pouquinha coisa, ao saber que seu filho tirara zero numa prova de matemática, embora sabendo que o filho era um debiloide, não vacilou em apontar às autoridades o professor da criança como perigoso agente comunista".

Se o fato ocorresse hoje, ninguém estranharia. Em novembro, a Polícia Civil intimou o diretor da Escola Municipal Getúlio Vargas, em Resende (RJ), a prestar depoimento, baseando-se em denúncia anônima encaminhada pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Uma pessoa afirmava que os alunos estariam sendo "expostos a conceitos comunistas" e "ideologia de gêneros". A anônima inspetora de ensino dos tempos da ditadura transformou-se na poderosa ministra Damares Alves do governo Bolsonaro.

Não é preciso arrolar os inúmeros cacos de burrice explícita do presidente —como ter ido visitar a "Torre de Pizza" e confundido o político John Kerry com o humorista Jim Carrey— nem ressuscitar o ex-ministro da Educação que não sabia escrever a palavra "impressionante" (grafava "imprecionante") para notar as semelhanças de estilo, intenção e gesto dos tempos bolsonaristas com os da redentora. O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, não deixa a peteca cair: "É melhor perder a vida do que perder a liberdade".

Na ditadura, quiseram prender Sófocles (que morreu por volta de 406 a.C.), autor de peça clássica, "Electra", considerada subversiva; o filme "Ivan, o Terrível", de Serguei Eisenstein, que conta a história do czar russo que viveu no século 16, teve sua exibição proibida em Belém para impedir que o "credo vermelho" fosse difundido entre nós. É bom ficar só nesses dois exemplos, para não dar munição ao secretário especial da Cultura, Mario Frias.

Até porque a pasta dele, em matéria de besteira, não precisa de incentivo. O braço direito de Frias, o capitão da PM André Porciuncula, ficou revoltado porque a imprensa brasileira repercutiu um comercial natalino da Posten, os correios da Noruega, que mostra o bom velhinho beijando um homem na boca.

Escreveu Porciuncula no Twitter: "Estou verificando cada veículo de mídia que divulgou a cena do São Nicolau (Papai Noel). O santo é parte integrante da fé cristã e, até onde eu sei, desrespeitar a fé alheia ainda é crime. Farei uma notícia-crime contra os envolvidos. A mídia tem de respeitar a fé cristã".

É por isso que, volta e meia, ouvimos em um papo de bar com amigos ou lemos nas redes sociais: o que Stanislaw Ponte Preta diria do Brasil sob Bolsonaro? Uma coisa é certa: ele estaria mais atarefado do que nunca.

Nos seus 45 anos de vida, Sérgio Porto jamais fugiu do trabalho. Ficcionista, jornalista, radialista, teatrólogo, humorista, compositor, roteirista e apresentador de televisão, ele tinha sempre um papel na máquina de escrever, só levantando os olhos dela "para passar colírio".

Para dar conta do governo atual, teria de inventar mais uns dez heterônimos e multiplicar os festivais —das tolices, das asneiras, das bobagens, das estultices, das parvoíces, das ignorâncias...

A maior diferença em relação ao passado é que o idiota de hoje faz um julgamento elevado de si mesmo, sente-se orgulhoso da própria idiotia. E as besteiras estão carregadas de maldade.

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