domingo, 20 de março de 2022

Há 'maus' que vão passar a ser 'bons'?

A velha e sábia frase de Lord Palmerston, primeiro-ministro da rainha Vitória, proferida no auge do império britânico, apesar de tantas vezes repetida, nunca terá sido tão atual e global como hoje: “Não há aliados eternos nem inimigos perpétuos, apenas interesses que são eternos e perpétuos.” Desde que, com a invasão da Ucrânia, Putin fez cair a peça da Rússia no dominó mundial, toda a reconfiguração de uma nova ordem global entrou em ritmo acelerado, com cada país, ou bloco de nações, a procurar aproveitar as oportunidades que o momento oferece. Nesta nova realidade, que ninguém consegue prever com exatidão quanto tempo irá durar, mais do que alianças, procuram-se, agora, interesses comuns – até porque o inimigo, por enquanto “perpétuo”, já foi encontrado, com a Rússia a transformar-se numa espécie de ativo tóxico, a que ninguém quer ver-se associado.

Em nome dos interesses, assistimos à procura de novas alianças que, como Palmerston avisou, não serão eternas. E também não é de excluir que algumas inimizades, que pareciam perpétuas, passem, agora, para outra categoria, mais afável e de acordo com os alinhamentos geopolíticos que começam a ser formados.

Ahmad Qaddura (Suécia)

O interesse principal e mais urgente, como se percebe, é o das fontes de energia. Nesse campo, com o preço do barril de petróleo a subir e sem o fornecimento vindo da Rússia, começa a parecer já quase natural que a Venezuela possa, de repente, emergir de anos de sanções e de bloqueios e passe a vender novamente o seu “ouro negro” a norte-americanos e aos seus aliados. Isto porque, ao contrário até do que pensavam os EUA, os parceiros tradicionais de Washington no golfo Pérsico, como a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, receberam com frieza os apelos ocidentais para aumentarem a produção de petróleo, por forma a fazer baixar os preços.

Ao mesmo tempo, neste baralhar de cartas no jogo da geopolítica, também o Irão pode aproveitar a oportunidade, caso se conclua o novo acordo nuclear, garantia principal para que o seu petróleo possa regressar ao mercado mundial. E é muito significativo que, após meses de negociações, esse acordo esteja agora a ser bloqueado pela Rússia e não pelos EUA, como sucedia antes da invasão da Ucrânia.

A ironia (triste) não deixa de ser evidente: neste rearranjo de forças ao nível global, provocado por um autocrático Vladimir Putin, o Ocidente vai procurar alternativas energéticas noutros países… autocráticos. Entre eles, inclui-se, obviamente, a Arábia Saudita, onde o poder é exercido de facto pelo príncipe Mohammed bin Salman que, na última semana, mandou executar – de forma provocatória – 81 condenados “por terrorismo e crimes graves”, o que, naquele país, inclui todos e quaisquer opositores políticos do regime.

Quando, perante o que está a passar-se na Ucrânia, se traça uma linha divisória entre a autocracia e a democracia, era bom que o mesmo princípio fosse aplicado nas ações que se tomam a seguir. Embora o cinismo dos interesses tenha sido um dos pilares da ordem mundial saída da II Grande Guerra, também ficou provado que foi essa mesma postura que levou ao muito a que se assiste hoje, após o final da Guerra Fria. E há uma linha vermelha que os tempos atuais nos deviam traçar: não há ditadores “bons” – são todos maus, por definição.

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