Logo no início, Margareth lembra como começaram “estes tempos duros que marcaram, indelevelmente nossas vidas e que, podemos dizer, deram início ao século XXI”. Sua formação médica aparece na descrição da doença e seu enfrentamento, a formação literária surge em dezenas de citações apropriadas, não apenas de cientistas e médicos, também de escritores, filósofos, dramaturgos.
No primeiro capítulo, pergunta o que aprendemos. Foram esses meses de epidemia que fizeram os seres humanos constatarem que nosso futuro depende da ciência, da solidariedade social e da responsabilidade política; que o mundo é uma nação de 7,5 bilhões de pessoas integradas por cima das fronteiras nacionais, embora separadas por fronteiras sociais; que estamos todos conectados, não importa onde estejamos. Aprendemos também que nem todos pensam assim: há muitos que negam o papel da ciência e rejeitam a terra-pátria, como Edgar Morin chama o mundo atual. Até o abril em que o livro começa, esses eram conceitos abstratos, de filósofos e geógrafos; a epidemia colocou-os na consciência de bilhões de seres humanos e adotou-os como pilares do futuro: para construir um mundo melhor e mais belo.
Margareth Dalcolmo mostra isso em seus curtos e profundos artigos, misturando alto conhecimento de epidemiologia, com vasta cultura e forte sensibilidade social. Ela ajuda a ver a pátria do século XXI formada pela humanidade, seus valores humanistas e concepções do mundo, graças à ciência; mostra a necessidade de uma ética, sobretudo entre políticos, capaz de aceitar as regras da ciência e usá-la a serviço dos interesses da humanidade.
Quando fala da consciência social da população brasileira ao se vacinar, deixa implícito que, no Brasil, a cultura venceu a política, ao nos transformar em um dos países com maior índice de vacinação, apesar de ter o governo mais negacionista entre todos no mundo atual.
“Um Tempo Para Não Esquecer” faz lembrar como será diferente o Brasil quando tivermos consciência social pró-educação, vista como a mãe de todas as vacinas: contra a permanência da pobreza, a desigualdade, a ineficiência e o negacionismo. O capítulo sobre a aventura da ciência pode ser especial para despertar os jovens a descobrirem a beleza e o poder da ciência.
No capítulo “Depois da Delta, a Épsilon”, Margareth alerta para as epidemias futuras, por vírus e bactérias ainda não conhecidas. Nos faz lembrar a maior das epidemias já em marcha: o meteoro interno que, por falta de ética, usa a inteligência para depredar o meio ambiente e concentrar os benefícios sociais e econômicos do progresso, provocando uma nova extinção que ameaça a sobrevivência do homo sapiens.
Além do alerta, o livro acena para o caminho a seguir: “Esperamos que, dessa fusão entre o engajamento público e a comunidade científica, como o caminho mais democrático e sereno, seja possível vencer o reducionismo que distingue ciência e política e a cética encruzilhada entre certo e errado”. A última frase do livro diz: “vivemos um bom momento para se pensar o homo sapiens e o seu lugar no mundo”. Essa manifestação de otimismo no meio da epidemia lembra o Imperador Carlos IV, criando a Universidade de Praga em um dos anos mais trágicos da peste negra.
As epidemias dizimam populações, desagregam economias, desesperam povos; de positivo ficam as obras literárias de seu tempo: são as flores da epidemia. Em verso, Quintana resume, “e eis que veio uma peste e acabou com todos os homens mas em compensação ficaram as bibliotecas”.
O livro de Margareth Dalcolmo faz parte desse jardim, onde estão livros de Camus, Boccacio, Defoe. Por isso, é preciso universalizar suas especificidades nacionais e traduzi-lo a outros idiomas, para mostrar ao mundo o tamanho de nossa tragédia e o nível de nossa literatura ao descrever um “tempo para não esquecer”.
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