sexta-feira, 16 de julho de 2021

Vidas interrompidas

As quatro passaram a vida enfrentando e vencendo atrocidades como doenças, fome e a extrema miséria. Resistiram até ao vírus da covid-19, ao agravamento das dificuldades financeiras e à situação de vulnerabilidade que se aprofundou com a pandemia. Roberta, Crismilly Pérola, Kalyndra Selva e Fabiana só não superaram a fúria dos preconceituosos. Que acreditam só haver espaço neste mundo para quem é heterossexual.


A primeira foi incendiada enquanto dormia, na rua. Socorrida, as chamas atingiram 40% do seu corpo. Os médicos fizeram o possível. Mas as queimaduras foram tão profundas, que precisaram amputar-lhe os dois braços. Chegou a ser intubada, em estado gravíssimo. Morreu 15 dias depois. Para ficar em apenas dois relatos, a segunda, em outro momento, ficou parecendo tábua de tiro ao alvo. O corpo foi encontrado dias depois.

Os quatro crimes, registrados num espaço de três semanas, em meados de junho e início deste mês, são apenas um recorte dessa modalidade de violência cada vez mais frequente. Todos ocorreram em Pernambuco, sendo os três primeiros no Recife; o último, em Santa Cruz do Capibaribe, a cerca de 200 quilômetros da capital.

Poderiam ter acontecido em qualquer outro Estado ou município. Esse Brasil, lindo e trigueiro, está longe de ser aquele paraíso tropical das fantasias. O mundo todo agora o classifica como País barra pesada para as pessoas que não se enquadram nos padrões. Se elas forem transexuais, então, poderão ser contempladas com a barbárie.

Crismilly, Kalyndra, Roberta e Fabiana foram incendiadas, esfaqueadas ou mortas a tiros simplesmente porque não eram pessoas do jeito que os autores dos crimes queriam que fossem. Diante da dificuldade de conviver com a diferença delas, sentindo desconforto por dividir com mulheres transexuais o mesmo espaço social, acharam mais prático matá-las.

Para os transfóbicos não basta tratar a pessoa trans com desigualdade, no dia a dia. Não é suficiente achincalhá-la, humilhá-la. É preciso exterminá-la, como se pudessem determinar-lhe o direito ou não à vida.

É muito louco refletir sobre o que leva uma pessoa a matar a outra baseada num senso de moralidade, limitado e injusto, que lhe diz o que é certo e errado.

Que ódio incontrolável é esse, a ponto de transformar o preconceito em homicídio? Não há resposta. Os crimes de ódio contra Roberta, Crismilly, Kalyndra e Fabiana são episódios que revelam o quanto este país está longe de entabular uma discussão sobre a dignidade da pessoa LGBTQIA+.

Os criminosos podem até ser presos, mas o preconceito estrutural e institucional, de gênero, está na raiz do crime de ódio. Se as leis fossem cumpridas com o rigor da letra, não se repetiria com tamanha frequência.

O Estado, por sua vez, é omisso em políticas públicas para a população trans. E fica devendo mais essa. 

P.S.: São atos de barbárie, como esses, que marcam a história da cidadania brasileira
Cícero Belmar

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