Na prática, Araújo confessou sua inépcia. Sob seu comando, o Itamaraty comportou-se como se não houvesse pandemia. Culpou a pasta de Pazuello pela imprevidência de comprar a cota mínima de vacinas ofertadas pelo consórcio Covax Facility, da OMS. Jurou que partiu da Saúde também a ordem para a aquisição de cloroquina na Índia. Nesse ponto, quando apertado, Araújo reconheceu a participação de Bolsonaro, que falou por telefone com o primeiro-ministro indiano.
"Não houve plano único, uma política" para o gerenciamento da crise sanitária, declarou o ex-chanceler, sem se dar conta de que mordia a língua de Bolsonaro. Como "o Itamaraty não age de maneira autônoma", submeteu-se às demandas do ministério de Pazuello, comandado na base do "um manda e o outro obedece."
Na negociação sobre a vacina de Oxford-AstraZeneca, o Itamaraty apenas deu "apoio secundário, logístico, operacional." No colapso hospitalar de Manaus, enquanto o time de Pazuello receitava cloroquina a quem precisava respirar, a diplomacia brasileira fingiu não ver a doação de cilindros de oxigênio feita pela Venezuela. Araújo não pediu nem agradeceu o socorro. Estava envenenado pela "ideologia", acusou o presidente da CPI, Omar Aziz, eleito pelo Amazonas.
Enquanto triturava Pazuello, submetendo-o a uma forma de canibalismo típica dos caetés, que comeram o bispo Sardinha, Araújo atingiu uma espécie de cume do cinismo. Declarou várias vezes que nunca fez declarações ofensivas à China, que fornece o insumo usado pelo Butantan e pela Fiocruz na fabricação de vacinas.
Pior do que a presunção de Araújo de que ninguém se lembraria da sua insanidade retórica é a conclusão e que não havia razão para preocupação. Mesmo sabendo que todos conhecem seus ataques ao maior parceiro comercial do Brasil, o ex-chanceler acha que pode dizer o que bem entender no vácuo sanitário a que chegou o Brasil. Tudo, afinal, pode ser dito e feito quando ninguém se incomoda de ser chamado de "mentiroso" na frente das crianças.
"Eu imagino que o senhor tenha uma memória seletiva, para não dizer uma memória leviana", bateu a senadora Kátia Abreu. "O senhor não se lembra de nada do que importa e do que ocorreu efetivamente; e se lembra de questões mínimas, supérfluas e até mesmo não verdadeiras, como o senhor vem fazendo aqui todo esse momento. A impressão que se tem é que existe um Ernesto que fala conosco, de que nós ouvimos a voz, e um outro Ernesto que eu não sei onde fica, nas redes, na internet, nos artigos, nos blogs, falando coisas totalmente diferentes."
Kátia prosseguiu: "O senhor é um negacionista compulsivo, omisso. O senhor no MRE [Ministério das Relações Exteriores] foi uma bússola que nos direcionou para o caos, para um iceberg, bússola que nos levou para o naufrágio da política internacional, da política externa brasileira. Foi isso o que o senhor fez."
Depois que Ernesto Araújo executou na CPI o segundo ato da ópera da autofagia — o primeiro havia sido encenado na semana passada, com o depoimento do ex-secretário de Comunicação Fábio Wajngarten —, os senadores da CPI aguardam o depoimento de Pazuello mais ou menos como quem espera pela entrada no palco de uma soprano opulenta escalada para cantar no penúltimo ato.
É como se os inquiridores aguardassem um sinal claro de que a confusão final poderia estar próxima. Um fato que resumisse tudo o que a plateia deseja expressar quando diz: "Não é possível!" Muitos imaginam que o melhor sinal seria a imagem de Pazuello comendo o fígado de Bolsonaro: "Ele mandou, eu apenas obedeci." O mais provável, entretanto é que o ex-ministro, em estágio hemorrágico, saia da CPI acorrentado a um novo lema: "Um manda e o outro se lasca."
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