sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

O normal e o patológico

O ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, numa longa entrevista coletiva de sua equipe — na qual falou muito e foi embora sem responder perguntas —, anunciou a intenção de compra de 100 milhões de doses da vacina CoronaVac, de origem chinesa, produzida pelo Instituto Butantan, do governo de São Paulo, com o propósito de iniciar a vacinação dos grupos de risco, primeiramente, o pessoal da área de saúde. Aproveitou a ocasião para criticar duramente a imprensa, acusando a mídia de não se ater aos fatos e fazer interpretações fantasiosas sobre a atuação do governo e a sua própria no combate à pandemia.

Ao cobrar objetividade da imprensa, Pazuello tangenciou um universo que, talvez, tenha estudado na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, por onde passam oficiais de alta patente: a sociologia. É uma disciplina desprezada pelo presidente Jair Bolsonaro, ao qual, diga-se de passagem, se aplicariam com perfeição as críticas que fez à interpretação dos fatos relacionados à pandemia por parte dos jornalistas. Émile Durkheim, o pai da sociologia moderna, foi o primeiro a defender a objetividade dos fatos sociais, ou seja, sua externalidade em relação ao observador, como pilar metodológico de estudo das sociedades.



A grande sacada de Durkheim foi distinguir o fato social normal — aqueles que decorrem do desenvolvimento da sociedade dentro de uma norma comum, um padrão que visa o aprimoramento dos indivíduos e a manutenção da coesão e da vida em sociedade — do patológico. O fato social normal observa a ordem institucional, a vida individual mantém em funcionamento os laços solidários que unem os indivíduos de um grupo. O fato social patológico desenvolve-se fora da norma, como uma doença. Ele é perigoso, e quando atinge uma dimensão maior, pode afetar negativamente a sociedade.

Quando uma sociedade é tomada pela criminalidade e pela violência, como o Rio de Janeiro, ou regiões de periferia de outras cidades, como o Sol Nascente, aqui no Distrito Federal, é possível dizer que há um fato social patológico, que foge da normalidade esperada por uma sociedade. Durkheim partiu do pressuposto de que as sociedades apenas se mantêm coesas quando, de alguma forma, compartilham sentimentos e crenças comuns, mas, também, compreendeu que os povos não são, necessariamente, superiores uns aos outros, apenas são diferentes em sua estrutura, seus valores, seus conhecimentos, sua forma organizacional.

Em razão disso, estabeleceu alguns pressupostos: (1) os fatos sociais devem ser tratados como coisas; (2) a análise dos fatos sociais exige reflexão prévia e fuga de ideias preconcebidas; (3) o conjunto de crenças e sentimentos coletivos são a base da coesão da sociedade; (4) a própria sociedade cria mecanismos de coerção internos que fazem com que os indivíduos aceitem, de uma forma ou de outra, as regras estabelecidas; (5) a explicação dos fatos sociais deve ser buscada na sociedade e não nos indivíduos. Os estados psíquicos, na verdade, são consequências e não causas dos fenômenos sociais, daí serem objeto de outras ciências, como a antropologia, nos casos coletivos, ou a psicologia e a psiquiatria, nos casos individuais. Loucos no poder, como Nero, Hitler e — por que não? —, Donald Trump, porém, são um problema político.

Pazuello prestou contas das negociações para compra de vacinas, seringas e agulhas, defendendo-se da acusação de atraso nas aquisições. Estariam assegurados 2 milhões de doses de vacinas da AstraZeneca importadas pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz); 100,4 milhões de doses da Fiocruz/AstraZeneca até julho (produção nacional com ingrediente farmacêutivo ativo (IFA) importado; 110 milhões da Fiocruz/AstraZeneca (produção integral nacional) de agosto a dezembro; 42,5 milhões (provavelmente da AstraZeneca) a serem adquiridas por meio do mecanismo internacional Covax/Facility; e 100 milhões de doses do Instituto Butantan. No total, afirmou que o Brasil tem assegurados 354 milhões de doses de vacinas para 2021, mas não disse quando começa a vacinação em massa da população.

“Na hipótese média, estaríamos do dia 20 de janeiro ao dia 10 de fevereiro. Contamos aí com as vacinas produzidas no Brasil, tanto no Butantan quanto na Fiocruz. E, na hipótese mais alongada, a partir do dia 10 de fevereiro até o começo de março, que seria caso os registros e produção tenham quaisquer percalços”, disse Pazuello. Jornalistas não são sociólogos, mas foram treinados para distinguir um tigre de um elefante, mesmo sem saber sua anatomia. O problema de Pazuello — vamos deixar o presidente Jair Bolsonaro de lado — foi tratar como “coisa” normal a escalada da pandemia no Brasil, que já registra 200 mil mortos por vítimas da covid-19. Trata-se de uma patologia. Por ora, objetivamente, nem o ministro nem os brasileiros sabem quando começa a vacinação.

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