quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Indiferença coletiva e inação dos governantes são crimes mortais

Se você tem menos de 60 anos, provavelmente não pensa na morte. No entanto, depois, esse pensamento fica recorrente. A pergunta é esta: como eu gostaria de morrer? E a resposta mais frequente: durante o sono, à noite. Ou de dia, vá lá, mas sem sofrimento.

A transição suave para a morte é uma das maiores preocupações da medicina paliativa, especialidade relativamente nova que abarca todas as profissões de saúde. Defendendo que a morte digna é um direito humano, a OMS lançou um documento pioneiro sobre o tema em 2018. O problema é que não é fácil definir em que condições um paciente deve ter o direito à morte humanitária.

A pandemia de Covid-19 agravou a questão. Já se morria sem querer morrer: de bala perdida, doenças infecciosas, subnutrição ou obesidade, infarto causado por estresse... Agora estamos morrendo às multidões com insuficiência respiratória aguda, sem respiradores e oxigênio em falta. O ar não dá conta de um pulmão tão atingido: é preciso intervir para tentar salvar o paciente, nem sempre com chances de sucesso. Cabe então suavizar sua transição se a morte for inevitável. Em grandes catástrofes, esse dilema médico — ajudar a viver ou ajudar a morrer — se torna cada vez mais social, extrapolando o indivíduo e alcançando a sociedade como um todo, principalmente seus governantes.




Em condições de pandemia com tantos atingidos, tudo o que a OMS comentou em 2018 se tornou mais pungente e urgente, porque muitos doentes graves poderiam retomar uma vida normal, e não conseguem por irresponsabilidade coletiva e dos governantes. Torna-se séria infração ética a recusa ao uso de máscara, a negação dos dados da ciência e a falta de planejamento em logística, porque não apenas causam mortes, mas também agravam o sofrimento dos que morrem na porta de hospitais sem leitos nem oxigênio.

Nessa situação catastrófica, dois requisitos humanitários exigidos pela OMS para com os pacientes individuais se estendem a toda a sociedade. A compaixão é um deles, o discernimento é outro. Há compaixão nos profissionais de saúde que tentam desesperadamente prover condições de sobrevivência aos pacientes graves de Covid-19. Mas será que há compaixão nas pessoas que se aglomeram nas baladas, e nos gestores que duelam por priorizar os bônus políticos das vacinas e da vacinação? Discernimento é outro requisito. O profissional de saúde deve avaliar com critérios científicos as reais chances de sobrevivência de cada paciente. Os gestores devem também planejar suas ações nessa linha, para salvar vidas e suavizar as mortes.

Mas será que há discernimento no atraso de meses em reconhecer uma pandemia que já ceifou 200 mil vidas, ou na recomendação oficial de medicamentos inadequados para um tratamento inexistente?

Vidas perdidas por inação e medidas erráticas dos gestores seria como assistir aos profissionais de saúde recusarem-se a cuidar de um paciente próximo da morte, seja para evitá-la ou para suavizá-la. Não são erros, são crimes morais. Crimes de responsabilidade.
Roberto Lent

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