domingo, 10 de janeiro de 2021

Fila da vacina põe em xeque os privilégios no país do 'cercadinho'

 Após quase um ano de pandemia, está chegando a vacina — e, com ela, a aguardada luz no fim do túnel. Mas a promessa da imunização também traz consigo uma velha conhecida dos brasileiros: a questão da fila. Sua figura assombra o país do cercadinho VIP, no momento em que se discute quem terá prioridade na vacinação


O presidente Jair Bolsonaro já disse que não haverá como imunizar todo mundo em 2021. Ainda assim, no final do ano passado, STF e STJ consultaram a Fundação Oswaldo Cruz para que a instituição reservasse doses para seus ministros e servidores. Uma pesquisa da FGV-Ethics, ainda em andamento, feita com 200 alunos de Medicina indica que esse comportamento é comum na sociedade brasileira: nada menos do que 30% dos entrevistados responderam que avançariam a fila do SUS de modo irregular para conseguir remédio se houvesse uma oportunidade</a>.

Dilemas éticos como este mostram como a fila é um elemento estrutural da nossa prática democrática, acredita o antropólogo Roberto DaMatta, coautor (com Roberto Junqueira) do livro “Fila e democracia” (Rocco, 2017).

— A fila é a primeira lição que temos dentro dos ambientes de relacionamentos, a gente entra no mundo fazendo fila — diz o antropólogo. — Ela é também um limite. Nos obriga a olhar para os lados e esperar a nossa vez. Incomoda a cultura brasileira porque determina uma igualdade à qual não fomos educados.

Mesmo em sociedades que não conheciam o conceito de democracia as pessoas eram obrigadas a fazer filas, lembra Da Matta. Como, por exemplo, em rituais religiosos. Na Bíblia, até Jesus Cristo organizou fila em um casamento.

Em seu livro, porém, o antropólogo conta que, no Brasil, a fila é historicamente tratada como uma vergonha para quem as enfrenta. Uma característica cultural que dificulta a compreensão sobre critérios sanitários, e não burocráticos ou de poder, para a ordem da vacinação.

— As normas precisam ser transparentes e priorizar quem tem mais urgência e mais risco de morrer — diz DaMatta , que acaba de lançar “Você sabe com quem está falando?” (Rocco), com ensaios que abordam aspectos do autoritarismo no país. 

— Mas aí caímos no que chamo de ambiguidade de raiz, que é a nossa dificuldade em não hierarquizar, não criar gradações de pessoas. Até anteontem, éramos uma sociedade com escravos. As pessoas mais importantes não entravam na fila. As imagens de Debret mostram isso. Os escravos é que ficavam na fila para pegar a água, que faziam todo o trabalho manual.

O psicanalista Christian Dunker é outro que vê uma marca da herança escravocrata na questão das filas:

— Essa herança é clara em três pontos: o “nós” não inclui todos; a liberdade de um é a humilhação e o desamparo de outros; o direito de uso se comprova por prática do uso excessivo, desregrado e embrutecido como signo da liberdade do mestre.

A cultura brasileira de elite, lembra o psicanalista, “não suporta que outro tenha os mesmos privilégios de consumo que eu”. Neste sentido, um plano nacional da vacinação pública vira motivo de rancor. Leva a uma violência simbólica contra aquilo que, em tese, não pode ser comprado pelos “privilegiados”.

— Para essas pessoas, não se trata apenas de furar a fila, mas também de exibir sua condição social de excepcionalidade diante da lei que seria “para todos” — diz Dunker. — No fundo, é uma corrupção do uso do “nós”, aqueles que desde sempre se identificam com o campo relativamente pequeno, que chamei de "estrutura de condomínio".

Segundo o filósofo Danilo Marcondes, autor de “Textos básicos de ética: De Platão a Foucault” (Zahar), falta uma ideia de interesse coletivo a esses pequenos grupos, para quem a sociedade seria sempre uma “abstração”. Essa mentalidade é colocada à prova em situações extremas, como a de uma pandemia global, que exige novos desafios coletivos para a sobrevivência comum. Conforme apontam os cientistas, a imunização de rebanho só virá se a vacina contemplar um determinado número mínimo de pessoas.

— É uma discussão que se tem desde a Grécia Antiga: o indivíduo vive na comunidade e ele não pode estar bem em uma comunidade que vai mal — diz Marcondes. — Por exemplo, é difícil haver uma discordância na ideia de que profissionais da saúde precisam ser vacinados antes. Porque nós todos precisamos deles. Ao beneficiá-los, iremos beneficiar a sociedade como um todo.

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