Comprometeu-se com a criação de “um ciclo virtuoso para a economia (…) sem o viés ideológico” e que apoiaria “o setor agropecuário” para que siga “desempenhando um papel decisivo, em perfeita harmonia com a preservação do meio ambiente”. Prometeu um Brasil que seria visto por todos “como um país forte, pujante, confiante e ousado” e assegurou que seu ministério fora formado “de forma técnica, sem o tradicional viés político que tornou o Estado ineficiente e corrupto”.
Para o Ministério da Saúde escalou Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS).
Discursando na posse, Mandetta disse que “para estruturar o SUS, nós trabalharemos com carreira para a saúde pública brasileira”, mas reduziu o processo de sua definição às “entidades e associações médicas” e sua abrangência à “atenção primária” e às “áreas de difícil provimento”. Garantiu que, juntamente com o presidente, cuja eleição o teria deixado “extremamente feliz”, escreveriam “uma nova página” na saúde brasileira. “Para onde vamos?”, perguntou e respondeu: “Nós vamos para a redução de gastos”. Em entrevista afirmou que o SUS conta com “orçamento muito grande” e que, portanto, há recursos suficientes. O que falta, disse, é “boa gestão”, pois “tem muito ralo, desperdício, dinheiro sendo gasto desnecessariamente”.
O que marca, porém, o atual mandato presidencial, na metade do período de governo, na saúde e no SUS?
Destruição.
Em seus primeiros 24 meses, o governo brasileiro não cumpriu sequer uma de suas promessas de posse. Mas destruiu bastante. Ainda assim, parece satisfeito com sua obra. Também estão satisfeitos seus apoiadores.
Não obstante tanta satisfação, a “corrupção”, um tema tão propalado no governo e em suas bases políticas, adentrou a família do presidente e chegou às nádegas do senador Chico Rodrigues (DEM-RR), flagrado por agentes da Polícia Federal com cerca de R$ 30 mil presos à cueca. Silêncio constrangedor no Palácio do Planalto, seja pela localização e o volume apreendido, seja pelo envolvimento do vice-líder de Bolsonaro no Senado da República.
O tal “revigorar” da democracia correspondeu a sucessivos ataques aos poderes Legislativo e Judiciário. Ambos são anteparos institucionais ao autoritarismo, embora frágeis. Têm sido, também, impotentes para conter o descarado loteamento do Estado brasileiro: segundo dados do Tribunal de Contas da União, são mais de 6 mil militares no exercício de funções civis no governo federal. Deve-se assinalar, a esse respeito, que muitos parlamentares não apenas compactuam, mas promovem essa nociva prática de clientelismo político.
Na área econômica o “ciclo virtuoso, sem viés ideológico” vem se resumindo à retirada de direitos trabalhistas e previdenciários e à intensificação da sanha privatista que, a cada dia, sob evidente motivação ideológica, dilapida o patrimônio público a troco de banana, gera desemprego e aprofunda a dependência científico-tecnológica do país.
A “preservação do meio ambiente” foi completamente desmoralizada pelo “passar da boiada” anunciado por Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, e recebida com repúdio no plano internacional.
Nada de relevante foi formulado e implementado nas políticas públicas orientadas à consecução de “boas escolas” e “bons empregos”, pois não foi anunciado um programa sequer com essa finalidade. À frente do Ministério da Educação sucederam-se titulares que se caracterizaram por notável desconhecimento do setor que comandavam, cometimento de erros crassos ao utilizar a língua portuguesa e a mais total insignificância. A medida exata da importância política da geração de “bons empregos” é dada pela extinção do Ministério do Trabalho, criado em 1930 por Getúlio Vargas, transformado em mera secretaria de Trabalho (atentar para o “de” ao invés de “do”) no Ministério da Economia. Os números sobre desemprego indicam piora desse indicador. Segundo o IBGE eram 14,1 milhões (13,1%) no 3º trimestre de 2020, à espera dos “bons empregos” prometidos na posse.
Na saúde a destruição do que de melhor o país conquistou desde a promulgação da Constituição de 1988, como o Sistema Único de Saúde (SUS) e vários programas de saúde pública, vem horrorizando brasileiros e estrangeiros. Dos milhares de militares que saíram dos quartéis para as salas dos ministérios, estão os que, sem formação profissional e desqualificados para o exercício de funções sanitárias e epidemiológicas, foram postos em posições estratégicas do comando nacional do SUS.
Vêm protagonizando, diariamente, trapalhadas que, além de caracterizar incúria administrativa, já se incorporaram ao anedotário e ao jargão do setor. Não se fala mais, por exemplo, em planejamento, mas em “planificação”; a atenção básica foi substituída pela “atenção primária à saúde”; a palavra ontem deu lugar à enigmática (para civis) expressão “D menos 1” (e, claro, o termo amanhã, por demais complexo para a comunicação entre servidores públicos civis, deu lugar a um inacreditável “D mais 1”), ambos a revelar a notável sagacidade militar e sua enorme capacidade de criar códigos indecifráveis a paisanos mortais comuns.
Mas esse jogo de palavras, tão ao gosto de propagandistas sem compromisso ético com o interesse público, serve apenas para encobrir o cenário de destruição das políticas nacionais e dos programas de saúde pública sob responsabilidade do Ministério da Saúde.
Enquanto o “teto de gastos” definido pela Emenda Constitucional 95/2016 agrava o cenário de desfinanciamento do sistema público de saúde, cresce a lista de destruições de políticas e programas do SUS. Não quero aborrecer leitores com listagens, sendo suficiente assinalar a esse respeito, a descaracterização da política nacional de saúde mental e a desorganização do programa nacional de imunizações (PNI). Na saúde mental, pôs-se em curso a substituição da lógica antimanicomial que vem regendo com êxito e reconhecimento mundial essa política pública nas últimas décadas, por seu oposto, que busca fundamentar as ações nessa área fortalecendo o papel do hospital psiquiátrico como eixo da intervenção do SUS, complementado por “comunidades terapêuticas”, majoritariamente controladas por organizações religiosas.
É um recuo gravíssimo nas ações que o Brasil vinha desenvolvendo na saúde mental e, por essa razão, objeto de muitas e duríssimas críticas de profissionais de várias especialidades nessa área. No PNI, os índices de cobertura vacinal nunca foram tão baixos em todas as frentes de atuação e grupos etários, com iminente perda de controle sanitário de doenças como sarampo, tétano, difteria e coqueluche, dentre outras. Cogita-se até mesmo da reemergência da poliomielite (paralisia infantil).
A carreira de Estado do SUS, multiprofissional, interfederativa, única, de abrangência nacional e coordenada pelo governo federal, segue como quimera dos profissionais de saúde, pois nenhum passo foi dado nesse sentido, descumprindo-se a promessa do então candidato do PSL, reiterada por Mandetta ao tomar posse, de uma “carreira de Estado”, ainda que restrita a médicos e à atenção básica.
A velha política, tão criticada durante a campanha eleitoral de 2018, não foi apenas mantida, mas aprofundada em práticas de conchavos políticos e do tradicional toma-lá-dá-cá. O “viés ideológico” que os atuais governantes viam nas ações dos adversários, teve o sinal, digamos, invertido: tentou-se ideologizar e partidarizar a Anvisa, chegando-se ao ponto de servidores profissionais do órgão regulador saírem em defesa da manutenção da agência como órgão sanitário do Estado brasileiro e não a serviço desse ou daquele governo. Ainda assim, Bolsonaro vem insistindo em utilizar a agência para ameaçar governadores e prefeitos desafetos, tidos pelo Planalto como “inimigos da pátria, da ordem e da liberdade”. Claro que o governo, cujo vice-líder no Senado esconde dinheiro na cueca e cujos próceres praticam “rachadinhas”, vê a si mesmo como “a Pátria” sendo agredida.
Uma das mudanças que o governo pretendeu implantar nesses primeiros 24 meses, diz respeito aos mecanismos de transferências de recursos do SUS, da União para os municípios. Com o programa “Previne Brasil”, lançado em 12/11/2019, pretendeu-se substituir o modelo baseado em critérios demográficos e de serviços disponíveis, por outro cuja base seria o cadastramento de indivíduos associando-o com o “desempenho” das equipes de saúde.
A proposta teve boa acolhida entre muitos gestores municipais do SUS e poderia representar um bem-vindo aprimoramento nos mecanismos de gestão financeira, mas sua implementação, realizada de modo vertical, pouco participativo e, sobretudo, sem o acompanhamento do necessário suporte tecnológico e de recursos que a viabilizem, vem sendo desastrosa, com o governo federal revelando-se incapaz de promover o cadastramento pretendido, por meio de articulações eficientes com Estados e Municípios. Uma série de portarias protelatórias está sendo necessária para que os municípios não tenham seus recursos cortados pela área econômica federal, em plena pandemia de COVID-19. O Conselho Nacional de Saúde considera que o governo deve simplesmente recuar e desistir da alteração proposta, tamanha a confusão criada nesse processo.
A pandemia, aliás, é um capítulo à parte na incúria que marca o padrão das ações federais no SUS, conforme registrei em artigos (Terraplanismo epidemiológico, O gambito do Doria, e Carta a Oswaldo Cruz, dentre outros) aqui n’A Terra é Redonda. A síntese desses artigos, em essência compartilhada por vários analistas da política de enfrentamento da pandemia de COVID-19 no país, é que o governo federal abriu mão, deliberada e criminosamente, de coordenar as ações e operações em nível nacional e, mais que isso, vem contribuindo ativamente para desorganizar esse esforço a partir de Estados e Municípios.
O governo federal vem sabotando as intervenções de outros entes federativos, sob evidente motivação ideológica e a liderança inconteste do presidente da República, um notório negacionista e antivacinista. A consequência é que, agindo assim, descumpre decisões de conferências nacionais de saúde e resoluções do Conselho Nacional de Saúde e, deixando de executar recursos de dotações orçamentárias específicas, está na origem da disseminação da pandemia, com o aumento descontrolado do número de casos e óbitos.
É epidemiologicamente inútil que os propagandistas do Planalto busquem ressignificar palavras e falem em milhões de “curados da COVID-19”. O fato, absurdo, é que o governo brasileiro ocupou-se da compra e do controle da produção nacional de seringas para injetar as vacinas, apenas no último dia de 2020. Durante quase um ano, mesmo sabendo que dezenas de pesquisas para a produção de vacinas anti-COVID-19 estavam em desenvolvimento em vários países, e inclusive no Brasil, o governo federal nada fez para dimensionar a capacidade instalada no país e coordenar sua produção e distribuição em nosso território. Gerentes de botecos fariam melhor.
A esse respeito, muitos pensam que a principal dificuldade de Bolsonaro seja aceitar o valor da ciência, tendo em vista a baixa afeição do presidente a esse tipo de conhecimento. Supõem que ele “tem a cabeça” no período da ditadura civil-militar e aspira a recriar algo parecido com aquele contexto histórico, opondo-se a quem olha para o futuro. Em certo sentido, têm razão. Mas enganam-se.
Seu principal oponente não está na contemporaneidade, nem no passado recente, quando ele aprovava politicamente o terrorismo de Estado e a colocação de bombas em eventos comemorativos ao Dia do Trabalho, como no atentando do Riocentro, na noite de 30 de abril de 1981, mas bem atrás na linha do tempo.
Há mulheres e homens que estão à frente de seu tempo.
Bolsonaro é, ao contrário, desses homens que estão muito, muito atrás do seu tempo. Não é que ele queira voltar aos anos 1970, ou que prefira o Estado Novo, ou mesmo a República Velha. Para ele, ser um homem atrás do seu tempo é regressar ainda mais e, chegando ao período anterior à Independência, situar-se na virada da Colônia para o Império.
Seu principal conflito se dá mesmo é com Dom João VI e, portanto, com a ideia de Estado moderno no Brasil.
Com alguma imaginação, é possível vê-lo a tagarelar com Dom João VI em modorrentas tardes cariocas. O Imperador, após a Aclamação lá por volta de 1818, tentando convencê-lo do acertado que fora instituir uma Junta Vacínica já em 1811, para que o Estado se ocupasse institucionalmente desse assunto e tivesse condições de prevenir a ocorrência de varíola (Dom João VI ainda sentia, decerto, as dores de ter perdido o irmão Dom José, a quem sucedera na Coroa portuguesa, para a varíola, em 1788).
E vemos Bolsonaro balançando a cabeça, negaceando e esboçando um meio-sorriso, nervosamente. O Rei não me entende, pensa.
E vemos Dom João VI insistindo que a vacina era o futuro, que seria a redenção sanitária do Brasil ou algo assim.
Mas o presidente da República cético, contra-argumentando que “isso daí é assim mesmo, alguns morrerão, mas o país não pode parar” e tal.
Não é preciso, porém, muita imaginação para perceber os olhos esbugalhados e incrédulos do monarca voltados para Bolsonaro, como se estivesse a se perguntar sobre o futuro do seu reino. Mas, não. Não é possível saber o que Dom João VI está pensando naquele momento.
O que se sabe, contudo, é que a Junta Vacínica se consolidou e que, contrariando um desconsolado Bolsonaro, o Instituto Vacínico do Império foi criado em 1846.
De volta para o futuro, e tendo um homem muito atrás do seu tempo à frente da República, o Brasil de janeiro de 2021 deve concordar com Mandetta quanto a estar sendo escrita “uma nova página” na saúde brasileira. Uma página maligna. Deve-se reconhecer também que o ex-ministro da Saúde tinha razão em outra coisa: além de recursos, pois “tem muito ralo, desperdício, dinheiro sendo gasto desnecessariamente” e até mesmo escondido em cueca de senador, falta ao SUS “boa gestão” federal. E como falta. Não é difícil antever que, se continuarmos nesse rumo, a esses dois anos de destruição seguir-se-ão mais dois anos de demolição – que podem, sem dúvida, se transformar em seis anos.
Se já é um pesadelo, capaz de assombrar Dom João VI, como denominar esse futuro sombrio? Seremos capazes de reagir?
Não obstante tanta satisfação, a “corrupção”, um tema tão propalado no governo e em suas bases políticas, adentrou a família do presidente e chegou às nádegas do senador Chico Rodrigues (DEM-RR), flagrado por agentes da Polícia Federal com cerca de R$ 30 mil presos à cueca. Silêncio constrangedor no Palácio do Planalto, seja pela localização e o volume apreendido, seja pelo envolvimento do vice-líder de Bolsonaro no Senado da República.
O tal “revigorar” da democracia correspondeu a sucessivos ataques aos poderes Legislativo e Judiciário. Ambos são anteparos institucionais ao autoritarismo, embora frágeis. Têm sido, também, impotentes para conter o descarado loteamento do Estado brasileiro: segundo dados do Tribunal de Contas da União, são mais de 6 mil militares no exercício de funções civis no governo federal. Deve-se assinalar, a esse respeito, que muitos parlamentares não apenas compactuam, mas promovem essa nociva prática de clientelismo político.
Na área econômica o “ciclo virtuoso, sem viés ideológico” vem se resumindo à retirada de direitos trabalhistas e previdenciários e à intensificação da sanha privatista que, a cada dia, sob evidente motivação ideológica, dilapida o patrimônio público a troco de banana, gera desemprego e aprofunda a dependência científico-tecnológica do país.
A “preservação do meio ambiente” foi completamente desmoralizada pelo “passar da boiada” anunciado por Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, e recebida com repúdio no plano internacional.
Nada de relevante foi formulado e implementado nas políticas públicas orientadas à consecução de “boas escolas” e “bons empregos”, pois não foi anunciado um programa sequer com essa finalidade. À frente do Ministério da Educação sucederam-se titulares que se caracterizaram por notável desconhecimento do setor que comandavam, cometimento de erros crassos ao utilizar a língua portuguesa e a mais total insignificância. A medida exata da importância política da geração de “bons empregos” é dada pela extinção do Ministério do Trabalho, criado em 1930 por Getúlio Vargas, transformado em mera secretaria de Trabalho (atentar para o “de” ao invés de “do”) no Ministério da Economia. Os números sobre desemprego indicam piora desse indicador. Segundo o IBGE eram 14,1 milhões (13,1%) no 3º trimestre de 2020, à espera dos “bons empregos” prometidos na posse.
Na saúde a destruição do que de melhor o país conquistou desde a promulgação da Constituição de 1988, como o Sistema Único de Saúde (SUS) e vários programas de saúde pública, vem horrorizando brasileiros e estrangeiros. Dos milhares de militares que saíram dos quartéis para as salas dos ministérios, estão os que, sem formação profissional e desqualificados para o exercício de funções sanitárias e epidemiológicas, foram postos em posições estratégicas do comando nacional do SUS.
Vêm protagonizando, diariamente, trapalhadas que, além de caracterizar incúria administrativa, já se incorporaram ao anedotário e ao jargão do setor. Não se fala mais, por exemplo, em planejamento, mas em “planificação”; a atenção básica foi substituída pela “atenção primária à saúde”; a palavra ontem deu lugar à enigmática (para civis) expressão “D menos 1” (e, claro, o termo amanhã, por demais complexo para a comunicação entre servidores públicos civis, deu lugar a um inacreditável “D mais 1”), ambos a revelar a notável sagacidade militar e sua enorme capacidade de criar códigos indecifráveis a paisanos mortais comuns.
Mas esse jogo de palavras, tão ao gosto de propagandistas sem compromisso ético com o interesse público, serve apenas para encobrir o cenário de destruição das políticas nacionais e dos programas de saúde pública sob responsabilidade do Ministério da Saúde.
Enquanto o “teto de gastos” definido pela Emenda Constitucional 95/2016 agrava o cenário de desfinanciamento do sistema público de saúde, cresce a lista de destruições de políticas e programas do SUS. Não quero aborrecer leitores com listagens, sendo suficiente assinalar a esse respeito, a descaracterização da política nacional de saúde mental e a desorganização do programa nacional de imunizações (PNI). Na saúde mental, pôs-se em curso a substituição da lógica antimanicomial que vem regendo com êxito e reconhecimento mundial essa política pública nas últimas décadas, por seu oposto, que busca fundamentar as ações nessa área fortalecendo o papel do hospital psiquiátrico como eixo da intervenção do SUS, complementado por “comunidades terapêuticas”, majoritariamente controladas por organizações religiosas.
É um recuo gravíssimo nas ações que o Brasil vinha desenvolvendo na saúde mental e, por essa razão, objeto de muitas e duríssimas críticas de profissionais de várias especialidades nessa área. No PNI, os índices de cobertura vacinal nunca foram tão baixos em todas as frentes de atuação e grupos etários, com iminente perda de controle sanitário de doenças como sarampo, tétano, difteria e coqueluche, dentre outras. Cogita-se até mesmo da reemergência da poliomielite (paralisia infantil).
A carreira de Estado do SUS, multiprofissional, interfederativa, única, de abrangência nacional e coordenada pelo governo federal, segue como quimera dos profissionais de saúde, pois nenhum passo foi dado nesse sentido, descumprindo-se a promessa do então candidato do PSL, reiterada por Mandetta ao tomar posse, de uma “carreira de Estado”, ainda que restrita a médicos e à atenção básica.
A velha política, tão criticada durante a campanha eleitoral de 2018, não foi apenas mantida, mas aprofundada em práticas de conchavos políticos e do tradicional toma-lá-dá-cá. O “viés ideológico” que os atuais governantes viam nas ações dos adversários, teve o sinal, digamos, invertido: tentou-se ideologizar e partidarizar a Anvisa, chegando-se ao ponto de servidores profissionais do órgão regulador saírem em defesa da manutenção da agência como órgão sanitário do Estado brasileiro e não a serviço desse ou daquele governo. Ainda assim, Bolsonaro vem insistindo em utilizar a agência para ameaçar governadores e prefeitos desafetos, tidos pelo Planalto como “inimigos da pátria, da ordem e da liberdade”. Claro que o governo, cujo vice-líder no Senado esconde dinheiro na cueca e cujos próceres praticam “rachadinhas”, vê a si mesmo como “a Pátria” sendo agredida.
Uma das mudanças que o governo pretendeu implantar nesses primeiros 24 meses, diz respeito aos mecanismos de transferências de recursos do SUS, da União para os municípios. Com o programa “Previne Brasil”, lançado em 12/11/2019, pretendeu-se substituir o modelo baseado em critérios demográficos e de serviços disponíveis, por outro cuja base seria o cadastramento de indivíduos associando-o com o “desempenho” das equipes de saúde.
A proposta teve boa acolhida entre muitos gestores municipais do SUS e poderia representar um bem-vindo aprimoramento nos mecanismos de gestão financeira, mas sua implementação, realizada de modo vertical, pouco participativo e, sobretudo, sem o acompanhamento do necessário suporte tecnológico e de recursos que a viabilizem, vem sendo desastrosa, com o governo federal revelando-se incapaz de promover o cadastramento pretendido, por meio de articulações eficientes com Estados e Municípios. Uma série de portarias protelatórias está sendo necessária para que os municípios não tenham seus recursos cortados pela área econômica federal, em plena pandemia de COVID-19. O Conselho Nacional de Saúde considera que o governo deve simplesmente recuar e desistir da alteração proposta, tamanha a confusão criada nesse processo.
A pandemia, aliás, é um capítulo à parte na incúria que marca o padrão das ações federais no SUS, conforme registrei em artigos (Terraplanismo epidemiológico, O gambito do Doria, e Carta a Oswaldo Cruz, dentre outros) aqui n’A Terra é Redonda. A síntese desses artigos, em essência compartilhada por vários analistas da política de enfrentamento da pandemia de COVID-19 no país, é que o governo federal abriu mão, deliberada e criminosamente, de coordenar as ações e operações em nível nacional e, mais que isso, vem contribuindo ativamente para desorganizar esse esforço a partir de Estados e Municípios.
O governo federal vem sabotando as intervenções de outros entes federativos, sob evidente motivação ideológica e a liderança inconteste do presidente da República, um notório negacionista e antivacinista. A consequência é que, agindo assim, descumpre decisões de conferências nacionais de saúde e resoluções do Conselho Nacional de Saúde e, deixando de executar recursos de dotações orçamentárias específicas, está na origem da disseminação da pandemia, com o aumento descontrolado do número de casos e óbitos.
É epidemiologicamente inútil que os propagandistas do Planalto busquem ressignificar palavras e falem em milhões de “curados da COVID-19”. O fato, absurdo, é que o governo brasileiro ocupou-se da compra e do controle da produção nacional de seringas para injetar as vacinas, apenas no último dia de 2020. Durante quase um ano, mesmo sabendo que dezenas de pesquisas para a produção de vacinas anti-COVID-19 estavam em desenvolvimento em vários países, e inclusive no Brasil, o governo federal nada fez para dimensionar a capacidade instalada no país e coordenar sua produção e distribuição em nosso território. Gerentes de botecos fariam melhor.
A esse respeito, muitos pensam que a principal dificuldade de Bolsonaro seja aceitar o valor da ciência, tendo em vista a baixa afeição do presidente a esse tipo de conhecimento. Supõem que ele “tem a cabeça” no período da ditadura civil-militar e aspira a recriar algo parecido com aquele contexto histórico, opondo-se a quem olha para o futuro. Em certo sentido, têm razão. Mas enganam-se.
Seu principal oponente não está na contemporaneidade, nem no passado recente, quando ele aprovava politicamente o terrorismo de Estado e a colocação de bombas em eventos comemorativos ao Dia do Trabalho, como no atentando do Riocentro, na noite de 30 de abril de 1981, mas bem atrás na linha do tempo.
Há mulheres e homens que estão à frente de seu tempo.
Bolsonaro é, ao contrário, desses homens que estão muito, muito atrás do seu tempo. Não é que ele queira voltar aos anos 1970, ou que prefira o Estado Novo, ou mesmo a República Velha. Para ele, ser um homem atrás do seu tempo é regressar ainda mais e, chegando ao período anterior à Independência, situar-se na virada da Colônia para o Império.
Seu principal conflito se dá mesmo é com Dom João VI e, portanto, com a ideia de Estado moderno no Brasil.
Com alguma imaginação, é possível vê-lo a tagarelar com Dom João VI em modorrentas tardes cariocas. O Imperador, após a Aclamação lá por volta de 1818, tentando convencê-lo do acertado que fora instituir uma Junta Vacínica já em 1811, para que o Estado se ocupasse institucionalmente desse assunto e tivesse condições de prevenir a ocorrência de varíola (Dom João VI ainda sentia, decerto, as dores de ter perdido o irmão Dom José, a quem sucedera na Coroa portuguesa, para a varíola, em 1788).
E vemos Bolsonaro balançando a cabeça, negaceando e esboçando um meio-sorriso, nervosamente. O Rei não me entende, pensa.
E vemos Dom João VI insistindo que a vacina era o futuro, que seria a redenção sanitária do Brasil ou algo assim.
Mas o presidente da República cético, contra-argumentando que “isso daí é assim mesmo, alguns morrerão, mas o país não pode parar” e tal.
Não é preciso, porém, muita imaginação para perceber os olhos esbugalhados e incrédulos do monarca voltados para Bolsonaro, como se estivesse a se perguntar sobre o futuro do seu reino. Mas, não. Não é possível saber o que Dom João VI está pensando naquele momento.
O que se sabe, contudo, é que a Junta Vacínica se consolidou e que, contrariando um desconsolado Bolsonaro, o Instituto Vacínico do Império foi criado em 1846.
De volta para o futuro, e tendo um homem muito atrás do seu tempo à frente da República, o Brasil de janeiro de 2021 deve concordar com Mandetta quanto a estar sendo escrita “uma nova página” na saúde brasileira. Uma página maligna. Deve-se reconhecer também que o ex-ministro da Saúde tinha razão em outra coisa: além de recursos, pois “tem muito ralo, desperdício, dinheiro sendo gasto desnecessariamente” e até mesmo escondido em cueca de senador, falta ao SUS “boa gestão” federal. E como falta. Não é difícil antever que, se continuarmos nesse rumo, a esses dois anos de destruição seguir-se-ão mais dois anos de demolição – que podem, sem dúvida, se transformar em seis anos.
Se já é um pesadelo, capaz de assombrar Dom João VI, como denominar esse futuro sombrio? Seremos capazes de reagir?
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