sábado, 31 de outubro de 2020

Anatomia do amoralismo brasileiro

Temos mil discordâncias, mas num ponto somos quase unânimes: somos um povo moralmente escorregadio. A maioria está convencida de que somos um povo sem caráter. A esperança de nos tornarmos mais civilizados, que em certos momentos chegamos a nutrir, parece ter-se esvaído de vez.

A pandemia reduziu a quase nada a dúvida que pudesse existir a esse respeito. De fato, quem observa nosso cotidiano logo percebe que centenas de milhares – a começar pelo presidente da República – não parecem dar a mínima para a saúde alheia. Solapam os esforços dos agentes de saúde que combatem a covid-19 na linha da frente. Fomentam aglomerações e recusam-se a cumprir os cuidados básicos estipulados pelas autoridades.



Frisemos que não se trata de um traço meramente psicológico ou cultural. É algo baseado em comportamentos reais, facilmente perceptíveis. Apresenta-se sob uma infinidade de formas, desde as garrafas de plástico deixadas nas ruas e nos jardins, passa por todo aquele contingente que não carece de auxílio emergencial, mas o pleiteia com o maior descaramento, e culmina em requintadas modalidades de estelionato. Tampouco se trata de classe social. Basta olhar em volta para constatarmos que o amoralismo permeia nossa sociedade de alto a baixo. Manifesta-se tanto entre pobres como entre ricos. Entre analfabetos e entre aqueles que estudaram até cansar.

Como compreender que tenhamos chegado a esse ponto? A interpretação geralmente aceita é a de que se trata do desfecho inevitável da colonização portuguesa. São “grilhões do passado”. Confesso que essa teoria não me agrada, mas não a rejeito in totum. A debilidade de nossa ordem normativa (ou seja, de nosso sistema de valores e normas morais) em parte se deve ao curso de nossa História. Decididamente, nunca tivemos e não temos nenhuma inclinação calvinista. Entre nós, nem o catolicismo, nem as religiões de origem africana, nem a família e muito menos o sistema de ensino facilitaram a formação de padrões morais introspectivos, de caráter individual. Sem esquecer que escravos, seres por definição carentes de interesses e desejos, não tinham de optar entre alternativas, portanto, não tinham que refletir sobre critérios de opção.

De qualquer forma, prefiro partir de premissas atualizadas. Parto da proposição de que nosso país, como qualquer outro, pode ser visualizado como uma justaposição de três grupos distintos: A, B e C.

O grupo A é composto pelos verdadeiros cidadãos. Gente honesta, que respeita os semelhantes, e não se afasta dos padrões morais aceitáveis e corretos em nenhuma circunstância. “No matter what”, como se diz em inglês.

No extremo oposto, o grupo C concentra a gente da pior espécie. Não só ladrões de colarinho branco, mas ladrões de verdade, gente violenta e assassinos que cedo manifestam tal inclinação e assim se comportarão ao longo da vida, em qualquer circunstância. “No matter what”.

O grupo B, presumivelmente o maior, é um emaranhado extremamente complexo. Compõe-se de gente que pode pender para um lado ou para o outro, conforme as circunstâncias. Gente que varia da simples malandragem até tipos mais perigosos, mas sem configurar um padrão previamente determinado. É plausível supor que o grupo B seja proporcionalmente maior em países mais pobres do que em países ricos, ou em momentos de depressão econômica do que em momentos de prosperidade, e em países governados por indivíduos e instituições corroídas pela ilegitimidade – retomo esse ponto adiante. Examinado ao microscópio, o grupo B deixa entrever alguns traços principais. O mais importante é o que Thomas Hobbes (1651) descreveu como a “luta de todos contra todos”. Sim, nesse grupo a luta pela sobrevivência é renhida e constante. Muitos dos que o integram não sabem do que vão viver amanhã, e não dispõem de recursos básicos (como uma boa escolaridade) que os tornem mais competitivos na arena cotidiana. Muitos não têm emprego, ou recaem no desemprego ao primeiro impacto de uma crise. Muitos conseguem trabalho, mas em empregos de má qualidade, mal remunerados, que não propiciam segurança, perspectiva de carreira, continuidade, e muito menos motivação. E não nos esqueçamos de que o Brasil nada possui que se assemelhe a uma classe média consistente, firmemente assentada em pequenos e médios empreendimentos, urbanos ou rurais.

Pois bem, o exemplo, como sabemos, deve vir de cima. Como poderá uma sociedade cujo núcleo coexiste com a amoralidade elevar-se a um nível de civilidade mais alto, se sua cúpula institucional – o Estado e as autoridades que o dirigem – todo dia nos brinda com aberrações jurídicas e acrobacias jurídicas de toda ordem, sem esquecer a corrupção propriamente dita? Se uma multidão de desempregados e subempregados recebe diariamente a informação de que, nos três Poderes, os que mandam metem a mão em cifras astronômicas?

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