segunda-feira, 21 de setembro de 2020

O povo dos macacos

Há uma diferença entre dizer como é o fascismo e dizer o que é o fascismo. Não é raro tomar-se uma coisa pela outra. Conhece-se o fascismo, mas compreender é tarefa distinta. Giambattista Vico, filósofo que Marx apreciava, dizia que somente podemos ter a ciência verdadeira do que criamos. Não da natureza, mas da História, porque é obra nossa. Contemplar a natureza, descrever os fenômenos, é um conhecimento incompleto, útil certamente, mas somente o criador, se existe, poderá ter a ciência da natureza porque o sujeito criador é verdadeiramente o sujeito cognoscente. Ele sabe porque algo existe, seu destino e finalidade. Nós conhecemos, ele compreende.

Vejamos, por exemplo, o popular texto (na verdade uma conferência) de Umberto Eco sobre o que ele denomina de Ur-Fascismo, fascismo eterno. Eco identifica uma série de características do fascismo presentes ao longo da História, desde o helenismo, há 2 mil anos e alguma coisa, na reação à revolução francesa, e assim por diante: irracionalismo, ressentimento social, elitismo, culto da tradição, nacionalismo, a mitologia do herói, etc.

O que Eco não explica é o porquê de, por volta do fim da segunda década do século XX, tudo isso se amalgama e se torna uma terrível e selvagem força social que muda a História. Portanto, embora seja útil descrever o fascismo, o que Eco fez elegantemente, ficamos sem compreender o que é o fascismo. Assim como os físicos, que são capazes de descrever com minúcias o big bang, mas não podem dizer por que ele ocorreu. Mas quando se trata da História a resposta pode ser uma ciência completa.

Outro exemplo é a recente resolução do Parlamento europeu que se valeu da categoria totalitarismo para equiparar nazismo e stalinismo. O fascismo é um dos modos de dominação sob o capitalismo, o que faz toda diferença para compreender o conceito. Apenas analisando a estrutura de classes do capitalismo é possível saber a quem ele serve, seu processo, gênese e desenvolvimento, natureza de classe, forças sociais que o impulsionam. Se não compreendemos verdadeiramente o fenômeno, que está vivo e nos ameaçando, como enfrentá-lo?


O fascismo tem uma, digamos, moldura, que passa pela estrutura de classes do capitalismo. Pelas duas classes fundamentais – a que detém os meios de produção e a que detém apenas a mercadoria força de trabalho, e pela classe “intermediária”, pequena burguesia e estratos médios. Não há um fascismo, há fascismos. O estado das relações entre classes, conflitos e tensões no interior de cada uma delas, crises de acumulação e crises ideológicas aparecem com características específicas em cada fascismo. Mas a moldura é “reação – base de massa”, sua singularidade.

O que distingue fascismo das conhecidas e históricas formas de repressão sob o capitalismo, domínio e violência de classe, é a pequena burguesia como força política e social na esfera da reação, que responde pelo termo “base de massa” na moldura.

Pequenos produtores ou comerciantes que escassamente empregam mão de obra assalariada, quando empregam, e a classe média vinculada ao grande capital, técnicos, burocratas, também funcionários do Estado (a nova pequena burguesia, como a denominava Nicos Poulantzas) compõem o núcleo dessa base de massa. Ambas se põem na esfera ideológica da sociedade burguesa, embora a primeira tenda a ser esmagada pelo grande capital. A segunda tem seu destino ligado a ele (para uma “radiografia” da pequena burguesia, Nicos Poulantzas, Fascismo e Ditadura, vol. II).

São extremamente valiosas as análises “a quente”, praticamente fontes primárias, feitas no momento da gênese do fascismo na Itália, a partir de 1919, como as de Clara Zetkin e Gramsci. Depauperada pela crise italiana do pós-guerra, a pequena-burguesia sente-se ameaçada de um lado pela crescente mobilização dos trabalhadores (que tinha ainda o influxo da Revolução Bolchevique) e de outro pelo que confusamente vê como o establishment. Pela identificação ideológica com a burguesia, quer mudanças no establishment, mas não na estrutura capitalista, por cujos privilégios anseia, e vê como inimiga a luta popular, sindicatos e movimentos dos trabalhadores.

Clara Zetkin, em um informe e proposta de resolução apresentados no III Pleno Ampliado da Internacional Comunista, em 1923, logo após a Marcha sobre Roma e o biennio nero (a feroz repressão contra os trabalhadores pelas milícias fascistas, basicamente compostas pela pequena burguesia, nos anos 20 e 21) mostrava a diferença entre o conhecido terror burguês e a o fascismo. O primeiro havia sido a repressão à revolução húngara, a execução de 5 mil pessoas levada a cabo por uma casta de oficiais feudais. Mas na Itália fascista – eis a novidade – a repressão tinha uma base de massas, primordialmente a pequena burguesia, porém alcançando desabrigados políticos, socialmente desenraizado, desiludidos, lúmpens, aventureiros.

A análise de Clara Zetkin demonstrava empiricamente, a partir da ascensão de Mussolini ao poder, o vínculo entre fascismo e burguesia, “uma fraude desmascarada pouco a pouco”. A promessa de proteção legal para a jornada de 8 horas havia sido completamente desfigurada por centenas de exceções, permissão de ignorá-la em certos casos e extinta para ferroviários, funcionários dos correios, comunicações e transportes; a promessa de salário-mínimo resultou em reduções salariais de 20 a 30% em média, chegando a 60% em certos casos; políticas de proteção social para idosos, enfermos e doentes abolidas; cortes no orçamento para as agências de emprego e de apoio aos desempregados; empresas públicas entregues a administradores privados; a manufatura de fósforos, que era monopólio estatal, passou a investidores privados, assim como entregas postais, indústrias telefônicas, rádio, telégrafos e ferrovias; a reforma tributária que seria destinada a taxar progressivamente o capital eliminou impostos sobre bens de luxo, carros, carruagens e se planejava uma ampliação dos impostos indiretos; foi revogada a exigência de que títulos tivessem o nome dos possuidores, facilitando a vida dos sonegadores de impostos.

Zetkin concluía: “a ‘nação’ se revelou como sendo a burguesia; o Estado fascista ideal revelou-se como sendo, em sua vulgaridade e falta de escrúpulos, o Estado de classe da burguesia” (Como nasce e morre o fascismo, Autonomia Literária).

Já estamos aptos a dizer agora da impressionante semelhança entre esse processo, o fascismo e sua gênese na Itália, e o Brasil de 2016 até este momento, apenas colocando algum grano salis. A nossa massa pequeno-burguesa, homens e mulheres brancos de classe média, camisas amarelas, nas ruas aos milhões, vociferando de ódio contra o que, em seu imaginário, representava os trabalhadores. O golpe parlamentar de 2016, que fez as vezes da Marcha sobre Roma. A ascensão ao poder de Mussolini e a de Bolsonaro em um regime com parlamento e instituições liberais formais (somente em 1926 aparece a ditadura aberta fascista) com amplo apoio do grande capital e da classe média branca nas cidades mais ricas. O descarado favorecimento ao grande capital, aniquilação de direitos trabalhistas, entrega de serviços públicos à iniciativa privada. Aqui podemos ver como o neoliberalismo e o fascismo são momentos e circunstâncias diferentes de uma só coisa e podem aparecer em um “mix” de formas ou modos de dominação – uma categoria nova e híbrida em desenvolvimento.

Em um artigo de 1921 (publicado no Ordine Nuovo), dizia Gramsci que a pequena burguesia imita a classe trabalhadora, sai às ruas, mas segundo a “tática que se faz pelos modos e formas permitida a uma classe de charlatães, de céticos, de corruptos”. “É como a projeção na realidade do relato da selva de Kipling (…) o povo dos macacos, que se crê superior a todos os demais povos da selva”. Mas, “em sua última encarnação política do fascismo, mostrou-se definitivamente em sua verdadeira natureza de escrava do capitalismo e da propriedade latifundiária, de agente da contrarrevolução. Também demonstrou ser fundamentalmente incapaz de desempenhar qualquer missão histórica: o povo dos macacos ocupa as páginas de sucessos, mas não cria história, deixa rastros nos jornais, mas não oferece material para escrever livros”. Impressionantemente, Gramsci descreve em 1921 o que vemos se desenrolar no Brasil contemporâneo, a natureza do povo dos macacos estampada nas redes sociais.

O fascismo sempre está em potência em uma formação capitalista por força de sua estrutura de classe (por isso a cadela está sempre no cio). Seu móvel é o favorecimento do grande capital, a exploração dos trabalhadores, aniquilação política ou física de suas lideranças, e então amalgama-se com a natureza volátil, confusa e individualista da pequena burguesia, instrumentaliza sua submissão e cegueira ideológica que a conduzem ao ódio, não aos reais opressores, mas a qualquer bode expiatório que cumpra o papel de ocultá-los.

Esse amálgama entre grande burguesia, pequena burguesia, lúmpens, aventureiros e aparelho de Estado legitima socialmente a anomia moral que é a marca do fascismo e então tudo é permitido. Para compreender o que é fascismo não basta descrever essa anomia e irracionalidade, mas saber a quem elas servem.

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