Mas, para sua surpresa, um de seus colaboradores na reunião interrompeu a conversa e compartilhou a capa de um jornal francês com a mesma notícia de sua filha. A reação inicial de todos: será que é verdade?
No dia seguinte, a mesma cena se repetiria na sede da ONU que, depois de meses fechada, volta timidamente a organizar suas reuniões entre embaixadores.
Num canto de uma das salas, diplomatas debatiam o assunto do dia: a doença de Bolsonaro. Entre risadas de ironia, preocupação real com o estado de saúde e alertas sobre o “recado divino”, não demoraria para que a mesma pergunta surgisse: será verdade que ele está contaminado?
Do outro lado do prédio, entre funcionários do restaurante, correio e dos serviços de limpeza, um português mostrava aos colegas um vídeo do presidente brasileiro tomando cloroquina e sorrindo. “Esse é aquele remédio suspenso?”, brincou um deles. Uma vez mais, a pergunta mais insiste surgiria pela expressão de uma faxineira dominicana: e se ele estiver mentindo?
Quase ninguém duvidou quando Boris Johnson anunciou que estava doente, nem quando o príncipe Charles e várias outras lideranças declararam seu status de saúde.
Eleito com base em uma mistura de meias-verdades e mentiras completas, apoiado em parte por charlatães e com um discurso populista, Bolsonaro colhe o que plantou no mundo: a repulsa e a desconfiança permanente. Até quando é verdade.
Já no ano passado, o governo francês causou a indignação de parte do Palácio do Planalto ao dizer que Bolsonaro não tinha dito a verdade sobre seus compromissos ambientais.
Hoje, o vírus disseminou essa percepção. Bolsonaro não inventou a mentira na política. Longe disso. Mas parte da estratégia de líderes populistas é a criação de uma realidade paralela. Dizer e desdizer no mesmo dia. Demitir e renomear, anunciar e cancelar. Acusar jornais de desinformar e criar seus próprios canais de disseminação de fake news.
A sistêmica destruição da relação de confiança entre governo e governados mina a democracia e a capacidade do mundo em dar resposta a uma pandemia real, incontornável e que mata.
Nesta semana, a presidente temporária da UE e chanceler da Alemanha, Angela Merkel mandou um duro recado a líderes pelo mundo que, nos últimos meses, se recusaram a aceitar a gravidade da pandemia. Para ela, a covid-19 mostrou os “limites” do populismo e do nacionalismo.
Em um discurso na qual não citou nomes, a alemã deixou claro que era o momento de a UE chegar a um acordo sobre como relançar sua economia. “Estamos vendo no momento que a pandemia não pode ser combatida com mentiras e desinformação, e nem pode ser com ódio e agitação”, disse a chanceler que, para muitos, saiu fortalecida diante da resposta que deu à crise.
“O populismo que nega os fatos está mostrando seus limites”, afirmou a alemã, arrancando aplausos no Parlamento Europeu. Ela não citou nomes. Mas seu discurso, no meio diplomático, foi interpretado como um recado a Donald Trump e Jair Bolsonaro.
Na comunidade internacional, os dois presidentes passaram a ser considerados como os principais expoentes de um comportamento negacionista em relação à gravidade do vírus. Os dois países são, hoje, os que acumulam os maiores números de mortes e de casos. Em ambos os casos, a manipulação de dados e o questionamento da ciência fizeram parte da resposta à pandemia.
“Em uma democracia, são necessários fatos e transparência. Isso distingue a Europa, e a Alemanha a defenderá durante sua presidência”, prometeu a alemã e que, antes de assumir um papel político era cientista de formação.
Desde o primeiro dia da pandemia, esse seria um teste da relação de confiança entre líderes políticos e suas populações. Seria um teste de caráter. Para cada um de nós e para os governos.
Sim, Bolsonaro está contaminado. Assim como está contaminada sua reputação pelo mundo. E, para isso, a cloroquina não será jamais a resposta.
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