segunda-feira, 18 de maio de 2020

O Brasil não relaxa nem aos domingos

Domingo já foi dia de pescaria, já foi lembrado pela nostalgia das jovens tardes, mas eis que não há mais calendário que resista à falta de romantismo dos tempos. Domingo agora é dia de manifestar disposição de guerra. Não tem mais piquenique na Quinta da Boa Vista. É o dia nacional de histeria, gritaria e todas as rimas ruins da bagunça na rampa do palácio em Brasília.

Era o dia em que se descansava das tensões. A sabedoria popular cunhou o “domingo pede cachimbo”, na crença de que era a pausa para o relaxamento, um dia bom para umas pitadas no fumo. Também acreditavam assim os católicos, todos nas igrejas lotadas, nas missas e rezas em uníssono para que o país se aquietasse, refletisse sobre seus pecados e fosse inundado de bons fluidos para uma semana de paz entre os homens de boa vontade. O novo domingo tem sido um inferno.

Não tem mais frango com polenta da mama paulista, nem picanha com arroz e feijão no Baixo Gávea. É o dia nacional da indigestão. Na santa hora do almoço em que antigamente a família se reunia para fortalecer os laços e saborear as tradições, meia dúzia de malucos tem ido todo domingo de maio para a porta do palácio. Da rampa, o presidente da república compactua com a aglomeração, vírus no vírus, em mais uma celebração do tenebroso festival “sunday, bloody sunday” tupiniquim.

Era o dia feliz de chutar pedrinha no calçadão da praia, uma unanimidade de sentimentos gentis, a ponto de o culto Drummond ter escrito “Nenhum desejo neste domingo/ Nenhum problema nesta vida”, e os popularíssimos Gal Costa e Tim Maia terem cantado “Eu preciso descobrir/ A emoção de estar contigo/ Ver o sol amanhecer/ E ver a vida acontecer/ Como um dia de domingo”. 

Nem as videocassetadas do Domingão do Faustão conseguem cenas tão grotescas como as do novo domingo nacional. Ontem, quando o placar da partida registrava 14 mil mortes a favor do coronavírus, foram transmitidos o close do umbigo presidencial e a insistência das bandeiras de Israel e dos Estados Unidos tremulando ao sol do planalto central do país. Só dói quando eu rio. Pela violência do espetáculo, na contramão do bom senso sanitário, desta vez não houve a necessidade de ofensas contra a democracia. A provocação era evidente. A filosofia da coisa não precisava ser declarada – morram-se todos.


Os domingos de outono têm sido assim. Não mais uma volta na Lagoa, não mais um intervalo para a pacificação dos espíritos - mas um trailer da tensão insuportável do que será o resto da semana. Um domingo ilegal. Saracoteando na rampa, desconhecidos sambam na cara de quem se mantém em isolamento e, incentivados pelo dono da casa, tiram selfies, tudo numa anarquia de despropósitos que contraria as regras de uso do prédio mais importante do país.

O novo domingo nacional se transformou num espetáculo de finalidades tenebrosas. Fora da nova ordem mundial, o aglomerado não parece nem aí para o risco e se joga à morte sob o estímulo da versão tropical de um amalucado imperador romano, aquele que jamais foi visto dizendo “obrigado”. Do alto da rampa, o homem acena para os fanáticos. Aos seus pés, eles se dividem entre pedir a volta ao trabalho, um cascudo no Toffoli e – Brasil acima de tudo - cloroquina na veia de todos.

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