A mudança aparente demonstrada no domingo pelo presidente durante a manifestação a seu favor na Esplanada dos Ministérios em Brasília, fazendo elogios à democracia e pedindo o respeito às instituições do Estado, cercado por 11 de seus ministros, foi somente uma estratégia no momento em que se vê assediado por vários processos que podem fazer com que perca o cargo. É a sua tática bem conhecida de dar um passo atrás e dois à frente em seus propósitos de escalada autoritária.
É possível dizer que por enquanto se trata somente de ameaças de Bolsonaro e suas hostes à democracia, ainda que algumas vezes já apareceram claramente as linhas de um regime ditatorial. Que existe o temor de que Bolsonaro prepare um golpe institucional apoiado pelos militares, revela o documento publicado no domingo por seis ex-ministros da Defesa no qual lembram as Forças Armadas de que elas devem fidelidade à Constituição e que “somente podem ser chamadas por algum dos Poderes constituídos para manter a ordem no caso de anarquia”. O medo está nas ruas.
Quando, por exemplo, em pleno Conselho de Estado no dia 22 de abril, do qual vários ministros generais do Exército participavam, o presidente ameaçou mandar os militares às ruas; quando o ministro da Educação, Abraham Weintraub, pode se permitir dizer impunemente, na mencionada reunião, que os 11 membros do Supremo Tribunal Federal são outros tantos “filhos da puta que deveriam ser presos”, e quando a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, pede abertamente que os governadores também sejam presos, sem que nenhum dos presentes intervenha para dizer que isso era uma barbaridade, a democracia está quebrada.
O presidente se empenha em sustentar uma política eugenista, para não dizer genocida, em relação à epidemia de coronavírus que está custando milhares de vidas. Não somente ataca o senso científico universal de combater a tragédia, como dá a entender que pouco importa que morram os idosos e os que já possuem alguma doença crônica. Parece que para ele só têm direito à vida as forças do trabalho. A economia, para ele, é mais importante do que a vida de milhares de inocentes.
Já antes de ser presidente, Bolsonaro havia afirmado, como lembrou em sua coluna de sábado em O Globo o membro da Academia Brasileira de Letras Merval Pereira: “Eu sou capitão do Exército. Minha especialidade é matar, não é curar ninguém”. Por isso sua paixão pelas armas. Quando as exibe e as acaricia são, de fato, as poucas vezes em que é visto rindo às gargalhadas. De prazer?
Quando é o presidente que provoca a autoridade de seu próprio ministro da Saúde, infringindo descaradamente as normas de prevenção impostas à população para deter a hemorragia da epidemia, e até incita a desobediência, a democracia está em perigo. Dessa maneira se explica que em menos de um mês e em plena escalada da epidemia precisaram deixar seu cargo dois ministros da Saúde, ambos médicos, diante da impossibilidade de aceitar o comando suicida do presidente.
Bolsonaro zomba da democracia quando uma corte de empresários e lobistas se apresenta sem aviso prévio no Supremo exigindo um encontro com o presidente do tribunal e é Bolsonaro quem faz as exigências no encontro.
E quando, em um regime democrático, o presidente insulta em público os jornalistas, ameaça punir os veículos de comunicação, jornais e redes de televisão retirando a licença e a publicidade oficial e incentivando que os empresários façam o mesmo? E quando insiste em afirmar “a Constituição sou eu” e quem manda no país é ele, como se o restante das instituições do Estado devesse estar às suas ordens?
O presidente, capitão reformado (ou expulso?) do Exército, tem uma característica psicológica que o assemelha aos garotos teimosos que quando levam bronca sabem dar um passo atrás para imediatamente dar dois à frente. Acabam sempre conseguindo o que querem. Dizem que também é uma característica de alguns loucos.
Hoje sabemos que é possível instaurar um regime ditatorial apesar da passagem pelas urnas. Temos exemplos aqui mesmo na América do Sul, como no caso da Venezuela, onde o presidente Nicolás Maduro foi eleito e acabou instaurando um regime de ditadura com a cumplicidade do Exército. Bolsonaro não precisa da cumplicidade dos militares já que os tem, às centenas, no Governo e nas outras esferas do Estado. Que segurança oferece o presidente capitão reformado de que em determinado momento não poderá convencer o Exército de que o Brasil sofre de excesso de democracia e que seria melhor cortar as liberdades?
Um presidente que antes de cumprir os dois anos de seu mandato se vê rechaçado pela maioria da mesma população de quem recebeu o voto e que se refugia cada vez mais em um grupo minoritário alimentado com suas saídas antidemocráticas, seu fanatismo de ver fantasmas de esquerda até debaixo da cama e sua tática de atiçar a política do ódio e a mania de perseguição não pode deixar de ser um perigo à democracia.
E para que não falte nada à sua tática autoritária e violenta começam a aparecer cada dia mais aguerridas suas milícias de triste memória nazifascista que exigem abertamente a morte da democracia. E já não se conformam com as palavras de ordem contra as liberdades democráticas e suas instituições e usam a força bruta para agredir seus opositores no melhor estilo fascista.
E se tudo isso é grave e começa a preocupar internacionalmente e pode ser um freio para que as empresas possam investir no país pelo temor de uma ruptura constitucional, não é menos grave que as instituições do Estado que deveriam e poderiam parar essa tentação totalitária do presidente, como o Congresso e o Supremo, pareçam perplexas, para não dizer amedrontadas, diante de suas bravatas e ameaças. Se o começo é alegando prudência diante das ameaças, o final é de joelhos humilhado diante do tirano em vez de ter a coragem de afirmar: “Daqui não se passa”. Este é o limite sagrado da democracia.
Dormem no Congresso, de fato, mais de 20 pedidos de impeachment contra o presidente sem que sejam encaminhados com a desculpa de que se trataria de um procedimento muito lento e desgastante. Enquanto isso, o Supremo se blinda em que não pode agir sem a autorização do Legislativo. Tudo isso tem um nome: é medo, se não for cumplicidade, já que todos sabem, porque já é clamor majoritário no país, que Bolsonaro já não representa a vontade da maioria.
Contra o bolsonarismo e sua parafernália de ódio à democracia também existe a evidência do engano feito na campanha eleitoral vencida pelo capitão brandindo três bandeiras de renovação nacional que acabaram imediatamente sacrificadas no altar da pior das políticas. Bolsonaro e os seus prometeram à época acabar com a corrupção que a Lava Jato havia começado a revelar e combatido com firmeza. Prometeram acabar com o conceito da “velha política” que humilhava a essência da democracia dobrando-a aos interesses de grupos e personagens do mundo político e até judicial. Contra ela propunham fortificar a luta contra as velhas práticas corruptas de governar, assim como prometiam à nação “menos Brasília e mais Brasil”, ou seja, uma economia com menos Estado e mais aberta à livre iniciativa e à abertura ao capital estrangeiro. Para isso colocou no Governo duas estrelas, o ex-juiz da Lava Jato Sergio Moro no Ministério da Justiça e o liberal Paulo Guedes, da Escola de Chicago, na Economia.
O novo Governo não demorou para revelar sua mentira. Em poucos meses queimou suas três bandeiras e colocou em marcha uma perseguição aos valores democráticos, revelando-se como um dos Governos não só alterados como de traição a todas suas promessas. O Brasil foi enganado e hoje paga duramente por aquela mentira.
Nem sempre na História as ditaduras foram impostas com um golpe de Estado e uma aberta ruptura institucional. Há muitas formas de assassinar a democracia e uma delas é a da tática que o presidente do Brasil está usando de amedrontar as instituições, aguçando os instintos de violência de minorias ideológicas extremistas que lhe servem de pavio para provocar o incêndio. Puro itinerário fascista mussoliniano.
Assim como uma pessoa pode ser assassinada de muitas formas, seja com as armas ou com a fome, a democracia também pode acabar sacrificada com a tática de minar suas instituições com o medo e com a violência. O resultado é sempre o mesmo: mais pobreza, menos liberdade, mais luz verde aos violentos, mais isolamento internacional, mais desprezo pela vida e o assassinato de tudo o que cheirar a cultura, a ciência, a defesa dos direitos humanos.
Os ditadores e aprendizes a tais costumam ter também um mesmo denominador comum que é uma fome e sede especiais pela religião. Não por seus valores de liberdade e sim por seus métodos de adormecer e atemorizar as consciências. E Bolsonaro, para não ficar para trás, já começou colocando Deus “acima de todos”. Mas um Deus que hoje se revela cúmplice de suas loucuras totalitárias, não o Deus da liberdade e da paixão pelo humano e pelos excluídos, pelos mansos de coração e não pelos violentos.
É isso o que se quer para o Brasil? Então o que esperam as outras instituições, os líderes democráticos, os que lutaram por um país livre? Dormir sobre as conquistas quando a bocarra da fera começa a mostrar seus dentes pode ser fatal. Cada dia de espera e de trégua às ameaças contra a democracia pode significar assinar a sentença de uma viagem sem volta à tirania.
Nenhum comentário:
Postar um comentário