O Brasil foi o primeiro país do mundo a ver manifestações de rua a favor desse direito e da reabertura do comércio. São caravanas de carros dirigidos por bolsonaristas, porque a polarização brasileira se adaptou ao coronavírus. Enquanto o presidente falava em cima de uma caminhonete em Brasília, Tomé Abduch, de 44 anos, porta-voz do movimento Nas Ruas, está prestes a pegar seu carro para liderar em São Paulo, epicentro da doença no Brasil, o protesto que seu movimento convocou por todo o país. Os mobilizados são na maioria homens, quase todos brancos de classe média alta. “É fácil manter todo mundo em casa quando você tem a geladeira cheia e sua casa é segura, mas a desnutrição vai causar inúmeras mortes. É importante um equilíbrio”, afirma o empresário, engenheiro civil e ativista anticorrupção formado nas grandes manifestações que levaram à destituição da ex-presidente Dilma Rousseff.
Agora o campo da batalha política são as quarentenas decretadas pelos governadores e a cloroquina, um remédio que Bolsonaro considera muito mais promissor do que o que foi demonstrado pela ciência até agora. A cisão é entre os que defendem o isolamento social para evitar o colapso hospitalar e salvar vidas, embora o dano econômico seja enorme, e aqueles que querem que só sejam isolados os mais vulneráveis, para evitar uma crise que afetará principalmente os mais pobres. Uma batalha travada nas instituições, na mídia e nas redes sociais.
O Brasil realizou um número ínfimo de testes (300 por milhão de habitantes) devido à falta de análise e de reagentes para processá-los. Embora o país tenha o sistema de saúde pública mais robusto da América do Sul, 15% da população vive em regiões sem unidades de terapia intensiva. O Ceará já está com todas as suas UTIs ocupadas, enquanto em São Paulo a ocupação é de cerca de 70%.
Abduch diz que não duvida da gravidade da doença. Seus pais estão isolados, mas ele argumenta que as pessoas que não são idosas e são saudáveis, como ele e sua esposa, deveriam poder abrir seus negócios e sair para trabalhar. Ele, como Bolsonaro, limitaria o isolamento aos maiores de 60 anos, aos que têm doenças crônicas e aos que convivem com eles. Além da Organização Mundial da Saúde, o Ministério da Saúde e inclusive as Forças Armadas do Brasil insistem que reduzir o contato entre as pessoas é, por enquanto, a melhor maneira de frear os contágios. Quando a crise evidenciou que Bolsonaro estava de um lado e seu ministro da Saúde do outro, o presidente o demitiu para nomear um mais afinado com ele. O novo ministro prometeu cuidar da saúde e da economia. A maioria da população apoia as medidas de isolamento social, mas o respaldo vai diminuindo com o passar das semanas.
Antes da carreata, Abduch garantia na cozinha de sua mansão que as quarentenas seriam, na verdade, parte de um plano orquestrado pelos outros poderes para quebrar o Brasil e se livrar de Bolsonaro. “Se fizermos uma projeção, veremos que a queda do emprego e da economia vai matar muito mais do que o coronavírus. Por isso, deveria haver preocupação com as duas coisas. E os governadores estão fazendo o contrário. Consideram que o Governo federal tem de dar dinheiro sem nenhuma contrapartida. E o que acontece? Que o Governo federal não tem esse dinheiro. Quebra”, afirma. “Estão claramente dando um golpe para que o Governo federal fique sem dinheiro e aí pedir o impeachment de Bolsonaro, assim como fizeram com Dilma. Para mim, isso é uma estratégia para derrubar o Governo, um Governo que tenta mudar nosso país”, acrescenta. Aqueles que saem agora às ruas contra as quarentenas consideram Bolsonaro o garantidor da mudança radical de que, em sua opinião, o sistema político necessita. E veem os líderes dos outros poderes como esquerdistas perigosos.
Para o analista Oliver Stuenkel, da Fundação Getulio Vargas e articulista do EL PAÍS, os protestos são fruto de “uma estratégia sofisticada” adotada por outros populistas, como o venezuelano Hugo Chávez e o húngaro Viktor Orbán: “Nas democracias saudáveis não há manifestações pró-regime. São produto de um líder conclamando seus seguidores a atacar um inimigo escolhido”.
Abduch ressalta que não se considera bolsonarista. Apoia o presidente porque é inovador e porque sua chegada ao Palácio do Planalto foi um tapa na cara do sistema corrupto. “Pode ser que as formas [de agir de Bolsonaro] não sejam as melhores, mas o conteúdo é”, afirma. No vídeo da convocação, Abduch insistiu para que os motoristas da carreata lavassem as mãos, usassem máscara e não saíssem de seus carros, mas, quando chegou o dia, ninguém pareceu se preocupar em passar um tempo conversando em pequenos grupos. Da mesma forma, ninguém ergueu nenhuma sobrancelha ante um caminhão com uma enorme faixa que dizia: “Exigimos uma intervenção militar já”.
Muitos brasileiros com trabalho fixo e algumas economias começaram a se confinar, assustados com as imagens que chegavam da Europa, antes que as autoridades estaduais fechassem as escolas, as lojas, os estádios, as igrejas e os shoppings. A Grande São Paulo, com mais de 20 milhões de habitantes, está irreconhecível sem o habitual trânsito infernal. Mas, em um país tão desigual, uma minoria pode trabalhar de casa e fazer pão à noite enquanto dezenas de milhões de pessoas precisam sair para ganhar o pão de cada dia e não podem manter a distância mínima porque vivem aglomeradas. Os contágios e as mortes continuam aumentando, mas num ritmo mais lento do que o inicialmente previsto pelos especialistas. “Acredito que não vai ser tão grave como em países frios e com populações maiores”, diz Elisabet Andrade, de 56 anos, uma vendedora de produtos Avon e Natura que participa do protesto com uma máscara com a bandeira do Brasil. Ela afirma que todo mundo deveria se proteger com máscara e gel e diz que as lojas deveriam abrir por turnos, mas principalmente que é preciso sair às ruas para derrubar o governador e os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado, para que deixem de atrapalhar Bolsonaro, que, com sua família, “vai resolver os problemas do Brasil”.
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