terça-feira, 21 de abril de 2020

Um novo normal

A Natureza tem sido clara desde o primeiro dia de crise: basta a produção abrandar para que o planeta aplauda. Fábricas a meio gás, uma quebra no consumo de petróleo e a redução do tráfego aéreo chegam para que emitamos menos um milhão de toneladas de CO2 por dia. Nos canais de Veneza, cidade-fantasma desde que o vírus assolou Itália, avistámos patos e alegres cardumes de peixes – cenário inédito desde há décadas, devido à poluição, aos cruzeiros e ao trânsito de gôndolas. Mas mais do que retirar conclusões místicas, importa deixarmos que estas fábulas de La Corona nos despertem para a ciência.


“Não podemos esquecer que a crise climática continua a ser o maior desafio que a Humanidade já enfrentou”, pode ler-se no site do movimento ambientalista português Climáximo. De facto, é irónico que a Humanidade precise de enfrentar uma terrível pandemia para cumprir, involuntariamente, grande parte daquilo para o qual a comunidade científica vem a alertar há décadas: temos de consumir menos, produzir menos e encontrar fontes de energia alternativas aos combustíveis fósseis (petróleo, gás, carvão), ou estamos todos tramados. Alice Stocco, do departamento de Ciências Ambientais da Universidade de Veneza, pretende usar este momento atípico enquanto exemplo no projeto de investigação que propõe a recuperação dos canais e da qualidade do ar da cidade – o que resultaria, ao mesmo tempo, no resgate da beleza romântica da velha sereníssima. Nesta linha, à escala planetária, a Greenpeace, entre outras organizações e movimentos ambientalistas, faz apelo a que se aproveite a infeliz oportunidade para sonhar com um mundo diferente. Mas o que podemos nós, cidadãos comuns, fazer em relação a isto?

Em primeiro lugar, é fundamental não encararmos a pandemia enquanto fenómeno externo, fruto do castigo divino ou acaso natural. Nas palavras do professor Soromenho-Marques, não podemos fingir que nada disto tem a ver com “a forma como está organizada a sociedade, a produção e a economia, mas pelo contrário: é exatamente por estar organizada da forma que está que nós chegámos aqui”. Mais de 75% das novas doenças na última década tiveram, segundo a Organização Mundial de Saúde, origem em animais, sendo consequência direta do comércio e consumo de carne, aliados à destruição pela indústria dos habitats naturais. O novo coronavírus não é exceção: surgiu nos mercados de animais exóticos na China e já são vários os apelos a que este comércio seja proibido.

Todavia, o problema não acaba aí, nem devemos perder-nos em discursos chauvinistas. É o sistema global que tem de mudar, se queremos durar enquanto espécie. O alastramento de novas doenças é uma de várias consequências previstas há muito pela comunidade científica, fruto de um sistema económico cego e híperconsumista que destrói o equilíbrio dos ecossistemas. As fabulosas imagens do reino animal, flagrantes desde que o COVID-19 se instalou – veados e corsas a saltitar no Japão, leões a passear no alcatrão sul-africano, elefantes a marchar nas ruas de Yunnan ou os bandos de macacos em protesto na Tailândia – não vêm, portanto, dizer-nos que os humanos são o vírus, mas sim que os humanos são responsáveis por este vírus. É um facto. Independentemente do poder poético e metafórico destas imagens, são fenómenos esplêndidos que devem relembrar-nos o nosso papel na Terra, como sinais subtis para uma urgência óbvia. Fazemos parte de um ecossistema cuja força e beleza nos ultrapassa. Seria suicida regressarmos ao mesmo, depois de Corona.

De seguida é, mais do que nunca, essencial exigir aos governos medidas sérias para a mitigação da crise climática, enquanto é tempo. O regresso à tão-aclamada normalidade dará compreensivelmente um foco muito grande à recuperação da economia global, mas é essencial não retomar o caminho do cataclismo. Não podemos regressar ao normal sem conceber um novo normal. O bloqueio industrial não é viável no sistema económico atual, claro, mas a habitual espiral de consumo e produção irresponsável também não, diz-nos ciência. A adaptação será complexa, mas vital e, como se vê, conseguimos perfeitamente organizar-nos em defesa do bem comum quando tem de ser. A crise pode e deve ser um primeiro passo no processo de transição justa: a passagem para um sistema económico verde, baseada na salvaguarda da coesão e justiça social. Há vários projectos em desenvolvimento neste âmbito. É fundamental renovar fontes de energia, reformular transportes, estudar alternativas, construir novas redes de comércio e criar novos empregos: empregos verdes. Tudo isto depende da nossa pressão e do nosso envolvimento. Agora.

O despertar para a importância de preservarmos o planeta é a única arma válida no meio do braço-de-ferro contra a doença: garantir que saímos da crise para um mundo diferente, mais belo, mais justo e mais respirável.

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