O Brasil tem feito a si mesmo perguntas profundas neste tempo extremo. Uma delas é: onde estão os invisíveis? O país sempre conviveu com um fosso social imenso que divide os incluídos dos excluídos. Os com e os sem. No mercado de trabalho sempre houve os com carteira e os sem carteira. Dentro e fora das leis trabalhistas. Os sem carteira se dividem em vários grupos: trabalhadores informais, os que trabalham por conta própria, os empregadores sem CNPJ, os desempregados, os desalentados, os nem nem, os subutilizados. É uma multidão. São, evitando dupla contagem, 64,8 milhões. É a soma de toda a população da Argentina, de Portugal e da Áustria. Eles de alguma forma iam vivendo e gerando sua própria renda. O choque de realidade que a pandemia provocou trouxe todos eles para a cena principal. Quem são, onde estão, como fazer um caminho para entregar a eles os recursos públicos? Dúvidas do tempo presente.
Tudo o que foi feito nos governos democráticos nesses últimos 35 anos ajuda muito. É o que temos. Não é suficiente. O governo Sarney começou com o programa do leite, evoluiu para cestas básicas. Betinho avisou que a fome de outro brasileiro era inaceitável e nos ensinou a solidariedade. Cidades testaram a transferência de renda vinculada à presença da criança na escola, o Bolsa Escola. Para isso foi necessário fazer a ficha dos beneficiários. Campinas, Distrito Federal, Belo Horizonte passaram a criar cadastros. Outras cidades as seguiram. Depois veio o Bolsa Escola Federal, no governo Fernando Henrique, que fez o primeiro cadastro geral. Em seguida o Bolsa Família, no governo Lula, que unificou programas federais, ampliou a transferência e incluiu mais brasileiros no que se chamou de Cadastro Único. É incompleto, mas é a base que está sendo usada agora no auxílio emergencial.
Derrubar a superinflação indexada deixada pelo regime militar, e que virou hiperinflação, foi uma saga que consumiu dez anos de esforços. O real permitiu que mais brasileiros tivessem acesso a bens de consumo. A privatização produziu uma enorme inclusão no mundo da telecomunicação. Hoje é com esses celulares em mãos que os pobres estão tentando inscrever-se no auxílio emergencial. Na venda das teles criou-se um fundo cujo dinheiro deveria ter sido usado para informatizar todas as escolas públicas e universalizar a banda larga. É o Fust, Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicação. Arrecada R$ 1 bi por ano e tem R$ 20 bilhões em caixa. O governo acaba de decretar o seu fim. Se a tarefa tivesse sido executada, seria possível hoje ter todas as crianças na escola, ainda que remotamente.
Fizemos casas para os pobres e nem de longe foi o suficiente. Nas favelas, o risco é aterrorizante. O serviço de água tratada é irregular. Como lavar as mãos? Nas moradias não há espaço. Como isolar algum eventual infectado? As falhas da política habitacional e do planejamento urbano cobram a conta. O SUS espalhou-se pelo país e com todas as suas falhas é a melhor rede que temos para acolher os brasileiros.
O que fizemos de certo nos 35 anos de democracia nos ajudará nessa emergência humanitária. O que deixamos de fazer cobrará a conta e ela talvez seja alta demais. Que a dor dessa travessia nos ensine.
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