terça-feira, 10 de março de 2020

Uma injustiça enterrada e explosiva

Me parece que não prestamos atenção o suficiente a uma notícia verdadeiramente atroz: o intolerável Donald Trump acaba de dizer que os Estados Unidos voltarão a usar minas antipessoa. Vejam, essas minas são um invento de uma perversidade horripilante. Possuem cargas explosivas muito pequenas porque seu objetivo não é matar, mas mutilar, arrebentar os ventres ou arrancar pernas e braços, para enfraquecer o oponente, forçando-o a cuidar de seus feridos e transportá-los. São artefatos cruéis que se fartam com a população civil. Por isso, quando se realizou em 1997 a Convenção de Ottawa para proibir o uso dessas minas, a humanidade deu um passo gigantesco. Sair do acordo, como Trump fez, é uma infâmia.

Mas, já que falo de minas e de indecência política, quero falar sobre os saarauís. Sim, desse povo que nós, espanhóis, traímos e vendemos como ovelhas aos marroquinos há 45 anos. Sim, esses mesmos saarauís que têm a Justiça e os acordos da ONU a seu favor, mas nem assim conseguem recuperar suas terras. De fato, todos os dias nos esquecemos um pouco mais deles.


E as minas são um exemplo perfeito desse esquecimento. Segundo a Landmine Monitor, o Saara Ocidental está entre os países mais tomados por minas no planeta. Talvez seja o mais poluído dos territórios habitados. E o muro que divide em dois o Saara Ocidental (de um lado os saarauís, do outro, a área ocupada por Marrocos) é o campo minado mais longo do mundo. Estima-se que nessa área existam entre sete e 10 milhões de minas, colocadas pelos dois lados do conflito durante a guerra. A ONU e a Frente Polisário, líder da causa saarauí, pediram repetidas vezes ao Marrocos mapas de localização de seus explosivos, sem nenhum resultado. A remoção de minas é cara, perigosa e difícil; as chuvas deslocam as bombas na areia, o que complica ainda mais sua localização. Aliás, há um grupo de aguerridas mulheres saarauís, as SMAWT, em inglês (Sahrawi Mine Action Women Team, grupo saarauí de mulheres em ação contra as minas), que se dedica a essa arriscadíssima tarefa de caçadoras e neutralizadoras de explosivos.

A Frente Polisário, que acata a convenção de Ottawa e a de Oslo (contra as bombas de fragmentação) fez um enorme esforço para reduzir seus artefatos explosivos e destruiu todo o seu arsenal de minas antipessoa (20.493 unidades) e de munições de fragmentação (24.107). Enquanto isso, o Marrocos continua sem aderir a Ottawa ou Oslo. Para piorar, ocorre que após o precário acordo de paz de 1991 entre Marrocos e a Polisário foi criada uma faixa de exclusão de cinco quilômetros de largura a leste do muro, onde não podem entrar nem pessoal nem equipamento militar, mas os civis podem.

Esta zona, que proporciona reservas de água porque se formam poças quando o muro cruza os rios, é atravessada o tempo todo por pastores nômades e seus animais, e é aí que está a maioria das minas. Entre 2014 e 2019, houve 186 vítimas. Uma delas passou 10 horas sangrando diante do olhar desamparado dos soldados, que não podiam entrar na zona de exclusão para resgatá-lo (por fim, civis o resgataram e foi preciso cortar a perna dele). Além disso, mais e mais animais são feridos ou mortos pelas explosões, o que arruína a vida dos pastores.

E sendo tudo isso horrível, o pior é que esta situação catastrófica que acabo de contar não existe oficialmente. Embora já tenhamos dito que o Saara Ocidental talvez seja o território habitado mais poluído por minas antipessoa em todo o planeta, não está no foco das áreas a serem limpas, de acordo com a Convenção de Ottawa, pois não possui status de país independente.

Além do mais, delegados saarauís não têm permissão para intervir de forma oficial nas conferências antiminas. Ottawa estabeleceu como objetivo conseguir em 2025 um mundo sem minas antipessoa (uma meta que Trump tornou muito difícil), e eu me pergunto como sequer se atrevem a esboçar semelhante conquista se não levam em conta os milhões de artefatos letais que irrigam o Saara. Aqui está uma boa metáfora da causa saarauí: é uma injustiça indecentemente silenciada, enterrada, explosiva.

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