Evitava apanhar sol. Usava protetor solar de grau máximo e nunca ia à praia. Mesmo assim, passeando em qualquer cidade europeia acima de Barcelona era frequentemente confundido com um árabe. O jovem sofria com o equívoco. Por vezes, ao cruzar-se com outros cabeças-rapadas (que mostravam, nos fortes braços, tatuagens semelhantes à sua), estes cuspiam-lhe insultos ferozes: “Volta para a tua terra, pastor de camelos!”, ou algo do género, e era como se lhe acertassem duas facadas certeiras no âmago da sua puríssima alma ariana.
Susa Monteiro |
– Além disso, o que tenho eu a ver com um árabe?
Baltazar viajava bastante pela Europa, em trabalho. Escondia as tatuagens dos colegas, mas tinha mais dificuldade em ocultar os preconceitos, o que já lhe trouxera vários dissabores. Certa tarde, estando de passagem por Hamburgo, achou-se diante de uma manifestação de extrema-direita. Viu a sua gente avançar, uma multidão sólida, vestida de negro, gritando palavras ásperas, e, num impulso solidário, correu a juntar-se a ela. Infelizmente, o seu gesto foi mal-interpretado. Um sujeito gordo, espantosamente ágil atendendo ao excesso de peso, cortou-lhe o caminho com um súbito golpe no pescoço. O português caiu no chão, arfando, e no instante seguinte estava rodeado de brutos, que o socavam e pontapeavam. Viu o brilho de uma lâmina e o sangue que saltava, mas não sentiu dor nem compreendeu onde o haviam ferido. Julgou que morreria ali, por um triste equívoco, às mãos dos companheiros de ideais. O alarido aumentou. Uma turba embateu contra a primeira. Alguém o ergueu. Baltazar abriu os olhos e percebeu que mudara de lado. Um grupo de jovens arrastava-o para longe. Gritavam em árabe. “Estes gajos estão a falar árabe!”, pensou, aterrorizado: “Estou a ser raptado por árabes!”
Na verdade, seria mais acertado chamar-lhe resgate. Uma porta abriu-se, outra fechou-se. Estenderam-no num divã. Baltazar olhou em volta e percebeu que estavam num restaurante oriental. Doía-lhe o corpo todo. Levou a mão esquerda ao ombro direito e sentiu a camisa empapada. Um rapaz de olhos largos e brilhantes colocou-se diante dele. Falava alto, numa algaraviada rápida e cerrada.
– Sou português. – Conseguiu dizer Baltazar, em inglês. – Não falo árabe.
– É português – disse o rapaz para os outros, mudando também para o inglês. – Um árabe cristão. Como te chamas?
– Almeida…
– Al-Maída, a mesa – traduziu o rapaz, rindo-se muito. Todos se riram. – És um bravo! Vimos como te lançaste sozinho contra os nazis.
– Não… Eu…
— Sim, sim, todos nós vimos. És um herói, Al-Maída.
Os outros vieram abraçá-lo, comovidos. Uma moça apareceu com água e material de primeiros socorros. Explicou que era enfermeira e pediu-lhe para tirar a camisa. Precisava tratar do ferimento. Baltazar lembrou-se da tatuagem. O que aconteceria se vissem a tatuagem?
– Não, não! Estou bem. Não vale a pena. Isto é só um arranhão…
A moça insistiu. Com uma tesoura, cortou a camisa. Depois, com um algodão, delicadamente, começou a limpar-lhe o ombro. Baltazar fechou os olhos. Pela primeira vez arrependia-se de ter mandado fazer a tatuagem.
– A ferida não é profunda – disse a enfermeira. – Mas estragaram-lhe a tatuagem. Só se consegue ler “pride”. Era “gay pride”?
À sua volta houve murmúrios, risos abafados.
– O português é gay – disse um dos rapazes.
A moça indignou-se:
– E qual é o problema de ser gay? É mais corajoso do que qualquer um de vocês.
Baltazar assumiu: sim, era gay, um gay português, quase árabe. Regressado a Lisboa, contou à namorada que havia sido assaltado por um bando de pretos. Um deles dera-lhe uma facada no ombro. Destruíra-lhe a tatuagem. “Não te preocupes”, consolou-o Fátima: “Fazes outra.”
Então, torturado pelos remorsos, Baltazar hesitou:
– Talvez não fossem bem pretos…
– Não?!
– Talvez fosse o contrário.
– Como assim?
– O preto era eu. O preto deles.
E caiu num imenso pranto. Depois, sentiu-se melhor. A verdade conforta.
José Eduardo Agualusa
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