terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

O elefante cor-de-rosa

Já fizeram o exercício do elefante cor-de-rosa? Só têm de não pensar num elefante cor-de-rosa durante alguns minutos. Já tentaram? É difícil e especialmente irónico. É que o raio do elefante só nos aparece à frente a partir do momento em que nos propomos a não pensar nele. Passámos anos sem que ele cruzasse o nosso pensamento e, de repente, por querermos ativamente evitá-lo, não nos sai do meio das sobrancelhas!


Pois é precisamente isso que está a acontecer com a extrema-direita em Portugal. Quanto mais nos esforçamos por não pensar nela, mais ela nos aparece em força e com a subtileza de um elefante numa loja de porcelanas. Dizem-nos que falar sobre o assunto é dar-lhe o protagonismo e o palco de que os seus representantes necessitam para crescer. Que ignorar é recusar o jogo da polémica que faz com que ganhem espaço nos média. Que bater de frente é dar azo à sua crescente vitimização. Que tomar medidas é dar argumentos para que forças antidemocráticas levantem a bandeira da liberdade de expressão. Nada mais ilusório.

Ignorar os discursos de ódio, não rebater a demagogia populista, não tomar posição firme em momentos simbólicos e fulcrais para a demarcação de fronteiras entre as forças democráticas e as que querem destruir a democracia, é ficar do lado errado da história, é ser conivente, é facilitar. Porque, nos últimos anos, com a crise e as respostas austeritárias, com as mudanças sociais e o acentuar das desigualdades, com a revelação de vários casos de corrupção e a lentidão da Justiça, com a atomização crescente e a delapidação do Estado social, muito espaço foi aberto para que, do desamparo, se criassem as condições ideais para os messias do populismo terem a cama feita. Deitarem-se nela ou não, é uma questão de tempo ou de luta (porque é preciso combatê-los).

Se dúvidas houvesse, com os acontecimentos recentes ficámos esclarecidos. Há muito racismo em Portugal. Das caixas de comentários a agentes das forças policiais. De um deputado da República à forma como muitos meios de comunicação têm amplificado ou legitimado os seus discursos. Sendo cada vez mais claro que há uma significativa parcela da população que considera, por exemplo, que uma pessoa negra, cidadã portuguesa, não pode criticar publicamente as instituições do País, ou falar do nosso passado colonial, ou mesmo sobre racismo, sem ser imediatamente instigada a voltar para a sua terra (dentro da lógica do quem está mal muda-se, agravada por acusações de “ingratidão” e outros julgamentos morais). Ou que prefere procurar justificações ou atenuantes para a violência policial, se a vítima for uma pessoa racializada, ignorando que a polícia é o Estado e que tem de ser a primeira defesa do Estado de direito.

Há quem afirme que o racismo não existe, do alto dos seus privilégios e de dentro dos seus condomínios. Há quem garanta que, na verdade, é provocado, agravado ou legitimado pelas pessoas que o combatem, ou que estas exercem racismo inverso e que, entre os negros, o racismo chega a ser pior ainda. Ignorando que o racismo é uma estrutura histórica, política e cultural, estabelecida há séculos, que hierarquiza o poder e reifica a desigualdade, dando hegemonia ao homem branco e subalternizando e estigmatizando a população negra. Não existindo, enquanto estrutura política e cultural no sentido inverso, e não sendo, infelizmente, uma mera questão interpessoal.

Ora, como quem evita a todo o custo ver o elefante na sala, as forças políticas democráticas andam a usar demasiados eufemismos, panos quentes e outros subterfúgios. Enquanto o elefante cresce e nos vamos tornando cada vez mais insensíveis e habituados à escalada de barbaridades e discursos de ódio. Enquanto o elefante que incomoda muita gente se vai transformando em muitos elefantes para incomodar muito mais. E enquanto nos dizem que se não falarmos sobre ele, o gigante desaparecerá.

Nenhum comentário:

Postar um comentário