Mesmo em tempos prolongados de paz, todos os países realizam, com maior ou menor periodicidade, manobras militares e jogos de guerra destinados a avaliar a “prontidão” das suas tropas, em caso de necessidade. De acordo com as alianças de cada nação e a localização geográfica onde os simulacros decorrem, muitos desses exercícios são realizados num regime de estreita cooperação com as forças armadas de outros países e sob um comando unificado. Com um objetivo claro: treinar a resposta mais rápida, eficiente e adequada à ameaça, de forma a derrotar o inimigo e a sofrer o menor número de baixas.
O mais incrível, em especial nos tempos que correm, é que este tipo de exercícios, com um grau elevado de cooperação e de movimentos coordenados, continua a ser apenas possível de se concretizar no campo militar. Só na preparação para a guerra, quase sempre com base em cenários hipotéticos de resposta a ataques dos inimigos tradicionais, sejam eles próximos ou estratégicos, os países aceitam coordenar planos, esforços e ações no terreno, recebendo ordens de uma cadeia de comando aceite por todos. No entanto, esta cooperação em assuntos de guerra não consegue repetir-se noutras batalhas, mesmo quando se enfrentam inimigos comuns, como as alterações climáticas ou a ameaça das pandemias. Nesses casos, como se tem visto, a cooperação limita-se às grandes declarações e aos discursos de intenção, mas continua a falhar na adoção de medidas e nas soluções no terreno.
Quem se preocupa minimamente com as questões da saúde pública, como as principais organizações sanitárias mundiais, sabia que uma epidemia como a do 2019-nCoV – o novo coronavírus que rapidamente alastrou a partir da China – iria ocorrer, mais tarde ou mais cedo. Ninguém podia adivinhar quando e onde a epidemia ia começar, mas todos sabiam que ela ia acontecer. Como também sabem que esta epidemia não será a última – outras se lhe seguirão.
Há pelo menos cinco anos que, por exemplo, Bill Gates anda a alertar para este risco e a pedir que os governos se coordenem entre si e se preparem para o enfrentar como se fossem para a guerra. O milionário fundador da Microsoft tem pedido mesmo que se use o exemplo dos exercícios militares realizados no âmbito da NATO como modelo para estancar futuras epidemias: a realização de jogos de guerra e de manobras, de forma a tentar antecipar como um vírus pode espalhar-se e até que ponto os serviços de saúde, nos vários países, estão preparados para enfrentar a ameaça e qual o tipo de ajuda internacional que pode ou deve ser ativado. Com o mesmo grau de prontidão e competência que se aplica nas guerras, para que todos marchem na mesma direção.
Num documento recente, em que enumerou os principais desafios para a década, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde sentiu também a necessidade de criticar os governos que gastam fortunas para tentar evitar os ataques terroristas, mas que não aplicam os mesmos esforços perante a possibilidade de um ataque com um vírus – “que pode ser muito mais mortífero e com muito maior impacto económico e social”, sublinhou.
Esta necessidade de coordenar esforços a nível internacional, ao mesmo tempo que se apela a maiores investimentos e esforços, públicos e privados, na promoção dos cuidados de saúde básicos, no combate às desigualdades e na luta contra a desinformação, acaba, no entanto, por colidir de frente com os discursos populistas, isolacionistas e nacionalistas que grassam pelo mundo. Mas se há algo que esta pandemia começa já a demonstrar – até pelo exemplo de cooperação entre cientistas – é que os grandes desafios planetários só se resolvem mesmo à escala planetária. E esta guerra ainda só começou.Rui Tavares Guedes
Nenhum comentário:
Postar um comentário