É pouco provável que o chanceler Ernesto Araújo considere necessário atualizar Bolsonaro sobre a “diplomacia de desclassificação” existente entre Estados Unidos e Argentina. Pena, pois desconhecê-la é atalho certo para mais erros do Brasil no futuro.
A audaciosa iniciativa diplomática fora anunciada em 2016 por Barack Obama durante sua visita oficial à Argentina de Cristina Kirchner, que à época ocupava a Casa Rosada. A pedido de Buenos Aires, os Estados Unidos se comprometiam a liberar a montanha de documentos oficiais secretos das relações bilaterais do período 1976-83. Um total de 47 mil páginas guardadas pelo FBI, CIA, Pentágono, Conselho de Segurança Nacional e Departamento de Estado.
O último lote de 7.500 documentos foi entregue cinco meses atrás, em cerimônia histórica, pois representou a maior quebra de sigilo de documentos sigilosos dos EUA para um governo estrangeiro. O evento fora deliberadamente agendado para coincidir com o 43º aniversário do golpe argentino. E quem recebeu em mãos a caixa selada contendo os últimos seis discos rígidos de luz crua sobre essa história foi o ministro da Justiça e dos Direitos Humanos da Argentina, Germán Garavano.
Garavano era um meninote de 6 anos quando a ditadura esquartejou seu país. Só nos 36 primeiros meses do regime de exceção, havia perto de 22 mil mortos e desaparecidos políticos na Argentina. E foi na presença de algumas vítimas daquela ditadura que Garavano, no papel de representante oficial de Mauricio Macri à cerimônia, fez questão de agradecer ao governo Donald Trump por ter dado continuidade à “diplomacia de desclassificação”. De fato, é um espanto, considerando-se a distância ideológica entre Obama e Trump. Algo como 400 funcionários de 16 órgãos públicos e agências federais das duas administrações americanas trabalharam na empreitada.
“Acredito que temos a responsabilidade de confrontar o passado com honestidade e transparência”, dissera Obama ao dar o pontapé inicial ao projeto, numa alusão ao envolvimento dos Estados Unidos na tragédia. Trump preferiu terceirizar responsabilidades. “Em nome do presidente dos EUA, entrego-lhe estes arquivos com a esperança de que ajudem a sanar o seu pais”, escreveu ao presidente argentino. A resposta de Macri deveria servir de alerta a Bolsonaro caso ele pense em discorrer sobre as virtudes da ditadura no país vizinho para ajudar o aliado em apuros. “Estes documentos terão papel fundamental para ajudar a Justiça nos episódios ainda inconclusos desse passado que constitui um dos períodos mais sombrios da história da Argentina”, escreveu Macri.
Na papelada liberada com apenas 3% de trechos embargados, o que é pouquíssimo para documentação tão cabeluda, há de tudo — nomes de perpetradores, dimensão da participação americana, detalhes das atrocidades, atuação dos serviços de inteligência europeus, escopo da Operação Condor, a parceria clandestina entre as ditaduras da época no Chile, Uruguai, Paraguai, Bolívia e Brasil. Aprende-se, por exemplo, que agentes em missões de assassinato no exterior recebiam US$ 3.500 para dez dias de trabalho, e que a “seleção final”das vítimas a serem eliminadas era feita “através de voto por maioria simples” do grupo. Ou vê-se o documento oficial no qual o agente do FBI em Buenos Aires, Robert Scherrer, informa sobre o sequestro e assassinato de dois funcionários diplomáticos cubanos , cujos corpos foram cimentados em tambores industriais de armazenamento.
É a Argentina — e os Estados Unidos — se confrontando com a sua história. Para o escritor, dramaturgo e professor chileno Ariel Dorfman, o Brasil continua de costas para o seu passado. Em entrevista ao repórter André Duchiade, ele dá a sua visão do futuro: “A impunidade das Forças Armadas brasileiras é o que abriu o caminho para Bolsonaro ser presidente e dizer as barbáries que pronuncia diariamente”.
Dorrit Harazim
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