quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Desconhecido e quase intacto: o segundo pulmão verde do planeta

Nas profundezas da África Central palpita uma das florestas mais desconhecidas e intactas do planeta, distribuída entre seis países. Mais de 200 milhões de hectares que em grande medida permanecem um mistério para a ciência e que, ao contrário da Amazônia ou das florestas tropicais da Indonésia, ainda estão ausentes dos catálogos turísticos e das prioridades do agronegócio. No entanto, a crescente demanda por alimentos, madeira e carvão, a falta de oportunidades econômicas e o comércio ilegal de espécies estão começando a corroer os recantos mais virgens da Bacia do Congo. Uma floresta que sustenta 60 milhões de pessoas; abriga uma em cada cinco espécies conhecidas, incluindo cerca de 10.000 de plantas, e regula o clima e os padrões de chuva do mundo. Não à toa, é o segundo pulmão verde do planeta depois da Amazônia.

Florestas da Bacia do Congo concentram 70% da cobertura florestal
 do continente e funcionam como um termostato natural para a região e para o mundo
“Precisamos urgentemente compreender como funcionam as florestas da África Central para criar planos de manejo sustentável que beneficiem as comunidades, o clima e a biodiversidade ao mesmo tempo”, diz Paolo Cerutti, um dos grandes especialistas mundiais no assunto e responsável pelo Projeto Formação, Pesquisa e Meio Ambiente em Tshopo (Forets), no norte da República Democrática do Congo (RDC). A iniciativa, financiada pelo XI Fundo Europeu de Desenvolvimento e coordenada pelo Centro Internacional de Pesquisa Florestal (Cifor), promove o desenvolvimento sustentável em torno da reserva da biosfera de Yangambi, além de formar a primeira grande geração de especialistas florestais do país e romper um isolamento científico alimentado por décadas de fragilidade e violência.

As principais causas de degradação da floresta na RDC são a produção de carvão e a agricultura de corte e queimada, seguidas pela extração de madeira e a mineração. “Normalmente, os madeireiros artesanais cortam de forma seletiva as árvores que interessam aos setores de marcenaria e construção”, explica a especialista científica do projeto, Silvia Ferrari. “Depois a população local corta o restante das árvores para fazer carvão e, na última etapa, queima toda a vegetação da região para cultivar alimentos como a mandioca. A produtividade é muito baixa e a terra logo se esgota, razão pela qual o ciclo se repete em outro lugar, devorando a floresta progressivamente”.

Esse círculo vicioso é um desafio considerável para o Forets e seus parceiros congoleses, especialmente considerando o ponto de partida: uma população que dobrou em apenas 20 anos e continua a crescer; a dependência do carvão e da lenha, que fornecem 80% da energia primária na África subsaariana e não têm um substituto imediato; bem como a demanda por madeiras nobres no continente e em mercados estrangeiros como a China. O panorama é complexo, mas existem saídas, começando por conhecer melhor como são e como funcionam as florestas da África Central.


Passar semanas seguidas trabalhando e vivendo na floresta equatorial não é algo simples, como bem sabem o doutorando congolês Nestor Luambua e sua equipe de apoio. Nos últimos meses eles inventariaram, mediram e identificaram todas as árvores em uma área equivalente a 300 campos de futebol, e o fizeram abrindo passagem a golpe de facão, evitando raízes aéreas e desfilando entre lodaçais e focos de formigas marabunta.

O calor e a umidade são suficientes para embaçar os óculos instantaneamente, mas Luambua e os seus companheiros sabem como entrar na floresta: “O gorro enfiado até as orelhas nos protege das nuvens de moscas que tentam entrar nos ouvidos; o capacete de obra, das frutas e galhos poderes que se desprendem a grande altura; e as botas de borracha são uma linha de defesa contra animais como víboras e cobras”, comenta Luambua durante uma parada ao longo do caminho. “Seja como for, quando estou na floresta não penso nos desconfortos; estou absorto em meu trabalho de pesquisa”.

Este rapaz de 29 anos está ciente de que está abrindo caminhos que outros seguirão, na floresta e fora dela. Em 2005 havia apenas seis pesquisadores com mestrado ou doutorado em ciências florestais em toda a RDC, um país quase cinco vezes maior que a Espanha e que concentra 60% das florestas da África Central. Luambua é um dos 220 estudantes de mestrado e doutorado congoleses que se formaram na última década sob o guarda-chuva do Cifor, da União Europeia e da Universidade de Kisangani (Unikis), a cerca de 90 quilómetros rio acima de Yangambi, no norte do país.

Luambua está pesquisando como as árvores locais reagiram às alterações climáticas e à presença humana no passado, enquanto o doutorando de 27 anos Chadrack Kafuti estuda o crescimento da Afrormosia (Pericopsis elata), a segunda espécie de madeira nobre mais exportada da RDC. Segundo o associado do Cifor Nils Bourland, essa espécie emblemática mal está se regenerando em condições naturais, razão pela qual continuar cortando-a às cegas poderia dar-lhe o golpe de misericórdia nas próximas décadas. Na Nigéria, Costa do Marfim e República Centro-Africana só estão de pé os barcos, móveis e caixões que foram feitos com sua resistente madeira castanho-dourada.

“Existem pouquíssimos estudos sobre como as florestas da Bacia do Congo reagirão ao aquecimento global”, diz Kafuti, explicando que esse conhecimento é essencial para prever como responderão à crise climática e à pressão demográfica no futuro, e para orientar as políticas de conservação e exploração sustentável das florestas na África Central.

O conhecimento é urgente em muitas áreas. De acordo com Kafuti, por exemplo, 70% das exportações de madeira da República Democrática do Congo são de apenas 10 espécies, o que ameaça sua sobrevivência. “É fundamental explorar outras espécies de potencial interesse econômico para reduzir a pressão sobre essas árvores, mas não temos cientistas suficientes”, explica Kafuti, que pesquisa com o apoio da Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens Ameaçadas de Extinção (Cites). E quando o pessoal não falha, o equipamento falha.

Até recentemente, os cientistas que estudavam árvores na Bacia do Congo tinham que levar suas amostras para a Europa (ou para mais longe) para analisá-las. “Imagine ter de carregar 30 cortes de madeira de 10 quilos cada até a Bélgica”, diz Kafuti, que colabora com a Universidade de Ghent e o Museu Real da África Central (RMCA). “Conheço pesquisadores congoleses que queriam realizar estudos muito interessantes sobre a anatomia da madeira, mas tiveram que jogar a toalha porque não havia equipamento adequado na região”. Em outros casos, o dinheiro acabou e as amostras terminaram empilhadas às margens do rio Congo, estragando ao lado de carregamentos de borracha e carvão vegetal.

Para sorte de Kafuti e seus colegas, a Estação de Pesquisa de Yangambi acaba de inaugurar o primeiro laboratório de biologia da madeira na África subsaariana. Uma instalação de ponta junto à floresta que permitirá que pesquisadores nacionais e estrangeiros compreendam como as árvores funcionam na Bacia do Congo. “A madeira representa 98% da biomassa da floresta tropical, então dificilmente podemos compreender a floresta sem conhecer esse componente”, explica Hans Beeckman, chefe do Serviço de Biologia da Madeira do RMCA e um dos promotores da instalação.

“O laboratório pretende se tornar um viveiro de cientistas congoleses e um centro de intercâmbio com especialistas de países da Bacia do Congo e de outros continentes”, resume Mélissa Rousseau, colaboradora científica do RMCA e responsável pela instalação. Os equipamentos, que no futuro serão totalmente operados por pessoal local, também poderão ser usados para a identificação forense da madeira. Ou seja, para determinar a quais espécies pertencem lotes de madeira que levantaram suspeitas entre as autoridades locais ou da Cites.

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