domingo, 28 de julho de 2019

Destruir o INPE é abrir mão de nossa soberania

De uma janela do avião é possível ver o solo passar lá embaixo. Um avião comercial voa a 900 km/h a 10 quilômetros do solo. Agora imagine se você estivesse em um dos satélites usados pelo Inpe para monitorar o desmatamento da Amazônia. Eles estão a 500 quilômetros de altura e viajam a 20.000 km/h. Lá de cima, telescópios poderosos fotografam continuamente o solo e enviam as imagens por meio de sinais de rádio. Os cientistas do Inpe comparam imagens do mesmo local obtidas em diferentes datas, identificam as áreas em que a floresta foi cortada, somam, e calculam o total. O conceito é simples, mas o diabo está nos detalhes.

Pela janela do avião, você vai perceber que grande parte do solo está coberto por nuvens. Sabemos que a cada instante mais de 50% da superfície do planeta esta coberta por nuvens. Pior: algumas áreas na Amazônia passam a maior parte do tempo cobertas por nuvens.


Você deve ter percebido que no Google Maps não existe uma nuvem sequer sobre o Brasil. Como é possível se metade do país esta sempre coberta por nuvens? Fácil, basta emendar imagens coletadas em datas diferentes, todas obtidas com o céu azul. De forma simplificada, é isso que o Inpe tenta fazer no projeto Prodes. Ao longo do ano, o Inpe seleciona as imagens da Amazônia com menos nuvens obtidas no período das secas. Com elas, o Inpe constrói uma espécie de fotomontagem da Amazônia. Aí ele compara essa montagem com a do ano anterior e determina as áreas que foram desmatadas.

As áreas desmatadas são então mascaradas para não se correr o risco de serem identificadas novamente nos anos seguintes. Como cada desmate é identificado diretamente nas imagens de satélite, e só são computadas áreas onde o corte foi total, o número obtido é muito confiável. A principal incerteza no Prodes é a estimativa das áreas desmatadas em regiões onde não foi possível obter imagens sem nuvens.

Essa estimativa é feita usando a taxa de desmatamento em áreas vizinhas em que não havia nuvens. E esses números são bem menos confiáveis. O problema é causado pelo fato de os satélites utilizados pelo Inpe somente sobrevoarem uma mesma área uma vez a cada 16 dias, o que diminui a chance de obter imagens sem cobertura de nuvens. Já há satélites que revisitam cada área com maior frequência e sua utilização provavelmente diminuiria muito a incerteza inerente à tecnologia usada hoje.

Os dados do Prodes permitem acompanhar o ritmo de desmatamento ano a ano, mas não servem para alertar os órgãos de fiscalização. Quando uma área desflorestada é identificada pelo Prodes, os culpados estão longe e a madeira já foi retirada da Amazônia.

Para resolver esse problema, o Inpe criou um sistema de alerta rápido, que informa o governo quando um desmatamento esta ocorrendo ou acabou de ocorrer. Esse sistema, o Deter, emite boletins diários e funciona de maneira diferente. Cada foto sem nuvens recebida é analisada e comparada com a última foto dessa área que existe no arquivo. Quando um novo desmatamento é detectado, o Inpe envia localização da área para os órgãos de fiscalização. O sistema é rápido e permite a atuação dos fiscais antes de a madeira desaparecer e o dinheiro chegar no bolso do dono do motosserra.

Mas há desvantagens. Ele não monitora toda a Amazônia a cada dia, mas somente as áreas sem nuvem fotografadas naquele dia e isso dificulta comparações e extrapolações. Imagine que em janeiro de 2017 as áreas sem nuvens se concentravam no centro da Amazônia, enquanto Rondônia estava coberta de nuvens. Como no centro da Amazônia ocorrem menos desmatamentos, o desmate medido em janeiro de 2017 é pequeno. Já em janeiro de 2018 as áreas sem nuvens se concentram em Rondônia, um local com muitos desmatamentos, e o centro da Amazônia é que agora está encoberto.

Assim, em janeiro de 2017 uma área pequena de desmatamento é detectada, já em janeiro de 2018 a área é maior Se compararmos desmatamento detectada pelo Deter em janeiro de 2018 com a de janeiro de 2017 o aumento vai ser enorme. Mas essa não é uma comparação válida pois estamos comparando peras com maças: Rondônia com o centro da Amazônia. Essa característica do Deter, e o cuidado que devemos ter com comparações entre dados do Deter, estão descritas nos documentos técnicos do programa. Apesar disso, essas comparações são divulgadas mensalmente e causam grande confusão, pois os níveis de desmate flutuam loucamente de um mês para o outro. Parece ser o caso agora: o Deter detectou aumento brutal no desmatamento em junho de 2019. Pode ou não ser representativo do que está ocorrendo em toda a Amazônia. Vamos ter que esperar os dados do PRODES para ter certeza.

Ao longo dos anos, a tecnologia dos satélites melhorou muito e os métodos de detecção nas imagens também. O Inpe tentou acompanhar esse progresso. Os satélites usados inicialmente só conseguiam detectar áreas desmatadas maiores que 30 hectares (um hectare é equivalente a um quarteirão em São Paulo: 100 metros por 100 metros). Essa é uma área enorme e pequenos desmatamentos passavam despercebidos.

Hoje o Inpe usa imagens de satélites melhores e pode detectar desmatamentos de 6 hectares. Mas é possível melhorar. Há satélites que detectam desmatamentos de 10 m² (algumas árvores) e revisitam uma mesma área quase diariamente. Entretanto, o número de imagens que precisam ser analisadas se um satélite como esse for usado é enorme. Essas imagens tampouco são gratuitas, como as usadas hoje pelo Inpe. Além de só detectar áreas grandes, o Inpe não consegue detectar de modo consistente desmatamentos parciais (onde só as grandes árvores são cortadas) e tampouco se preocupa em monitorar as áreas que são reflorestadas por plantio ou por terem sido abandonadas. No sistema atual, uma vez desmatada, essa área deixa de ser monitorada. No caso dessa área ser novamente tomada pela floresta, ela deveria ser reincorporada na conta da floresta em pé.

Os últimos 10 anos trouxeram duas importantes mudanças que ainda não foram incorporadas nas análises do Inpe. A primeira é o novo Código Florestal, lei aprovada em 2012 que regula a proteção das florestas. No caso da Amazônia, ela permite que um proprietário desmate até 20% da área de sua propriedade. Para tanto, tem de possuir uma autorização do governo. Os outros 80% da área têm de ser preservadas como Reserva Legal. Essa lei também exige que certas áreas, como beiras de rios, jamais sejam desmatadas, são as Áreas de Proteção Permanente (APPs). No Brasil, parte dos desmatamentos é legal e foi autorizado pelo governo e parte do desmatamento é ilegal. É preciso que as áreas de desmate legal sejam computadas de maneira separada dos desmates ilegais. Conhecer os dois números e como evoluem ao longo do tempo é imprescindível e isso ainda não é feito. O que necessita ser combatido é o desmate ilegal. A divulgação dos dados brutos de desmate dá a falsa impressão de que todos os desmatamentos são ilegais, o que não é verdade.

Outro grande progresso nos últimos anos foi a criação do Cadastro Ambiental Rural (CAR), um mapa digital de cada propriedade que é feito usando um GPS. O CAR delimita o perímetro da propriedade e dentro dela o perímetro das áreas de Reserva Legal, das APPs, e das áreas desmatadas. Além disso, contém o nome, CPF ou CNPJ do proprietário. A beleza do CAR é que, combinado às imagens de satélite, ele é o instrumento perfeito fiscalizar o cumprimento do Código. O CAR de cada propriedade pode ser sobreposto facilmente às fotos de satélite, da mesma maneira que o Google Maps desenha as ruas e indica os restaurantes sobre seus mapas.

Com isso, quando o Inpe detectar um desmatamento saberá imediatamente o dono da área, se o desmatamento foi em reserva legal ou em área de proteção permanente e se foi feito sem autorização. Assim, a cada ano não somente poderemos saber quantos quilômetros quadrados foram desmatados na Amazônia, mas quem desmatou e se foi ilegal. Com esses dados, multar desmatamentos ilegais é um passo automático. Da mesma maneira que a integração de radares, câmaras fotográficas e a identificação das chapas dos veículos permite a identificação de carros em alta velocidade, imagens de satélites acopladas aos cadastros do CAR permitirão identificar automaticamente os desmates ilegais na Amazônia, com o bônus de não criar suspeitas sobre proprietários rurais que cumprem a lei.

O Brasil foi um dos primeiros países a usar satélites para monitorar suas florestas, possui agora legislação rígida que regula o desmate e um cadastro em que as áreas a serem protegidas estão mapeadas. O próximo passo é juntar essas ferramentas em um sistema que realmente permita abolir o desmate ilegal no Brasil.

O governo, no lugar de criticar o Inpe, deveria investir na atualização e melhora do sistema. Se nosso sistema de monitoramento for abandonado ou destruído, não tenham dúvida, organizações internacionais assumirão essa tarefa e aí o governo vai ter de justificar dados de desmate coletados por terceiros. Isso sim é abrir mão de parte da soberania nacional.
Fernando Reinach

Nenhum comentário:

Postar um comentário