Em uma de suas sentidas reportagens daquele vale de dor, minha colega Marina Rossi nos informou sobre o desafio feito por algumas pessoas enlutadas às empresas responsáveis pelo crime, aos gritos de “não queremos dinheiro”. O desafio ecoa como um mantra ameaçador. Eles estão lutando para defender o valor da vida que não tem preço. Precisam ser ressarcidos de seus danos, mas querem deixar claro que nenhum dinheiro compensará a perda criminosa das vidas sacrificadas.
A História antiga e recente nos ensina que das grandes tragédias, das guerras e genocídios costumam surgir novos espaços de civilização e liberdade. De seus escombros nasceram uma nova consciência social e uma maior valorização da vida. Foi depois do nazismo, e dos grandes conflitos mundiais, que acabaram por dar vida, por exemplo, à Europa unida. Uma Europa, surgida nova da guerra, que desfruta pela primeira vez de meio século de paz.
Aqui no Brasil, num momento em que parecia que o país se resignava a ser vítima passiva dos crimes da corrupção e da violência, surge da pequena e martirizada localidade mineira de Brumadinho um grito de resistência contra o dinheiro do pecado e contra a injustiça que os golpeou.
Esse desafio de dignidade e indignação de gente que grita “não queremos dinheiro” aparece, no momento que o país vive, como um duro julgamento da classe política. Esta —que quase sem distinção quer, sim, dinheiro— se ajoelha perante esses empresários corruptos aos quais, para retribuir seus presentes, facilita leis que lhes permitem cometer, impunemente, crimes como os de Mariana e Brumadinho.
É como se dissessem a esses políticos e governantes: nós queremos só dignidade e trabalho seguro. Queremos hospitais onde nos devolvam a saúde. Queremos escolas nas que se infunda aos nossos filhos a paixão pela liberdade e o amor pela justiça. Queremos cidades onde possamos sair com a família para jantar sem medo de que nos coloquem uma pistola na cabeça para nos roubar o celular. Queremos trabalhar sem o pânico de sermos devorados pelos escombros. É como se dissessem: não queremos seu dinheiro de pecado. Só exigimos de vocês que defendam e respeitem nossa vida.
Na Bíblia, no livro dos Apóstolos, narra-se a simbólica cena em que um aleijado de nascimento, prostrado no chão à porta do Templo, pede uma esmola ao apóstolo Pedro. O pescador pobre da Galileia lhe diz: “Não tenho prata nem ouro, mas o que tenho te dou: levanta e anda”. Pegou-o pela mão e o fez caminhar. Aquele “não tenho prata nem ouro” de Pedro, que por outro lado foi capaz de devolver a vida às suas pernas mortas, é uma condenação aos poderes religiosos e políticos de hoje. A eles o que não falta é prata e ouro, tantas vezes arrancados da boa-fé da gente singela que procura redenção. O que não sabem é ressuscitar seus sonhos de justiça.
Esse grito de resistência do simbólico e provocador escutado em Brumadinho —“não queremos dinheiro”, e sim vida e respeito, segurança e dignidade— deveria hoje estar escrito na porta de todos os templos. Nos gabinetes de todos os governantes. Nos muros das empresas corruptas e coniventes com os políticos. Deveria ser a pichação que recorde o clamor da sociedade por um país menos apadrinhado com os poderes que matam.
Brumadinho deu o primeiro passo. Todos, desde crianças, começamos a andar quando perdemos o medo de ficarmos de pé e, embora cambaleando, iniciamos o caminho para a aventura da vida. Estará o Brasil começando a desafiar quem tenta anestesiá-lo? O Brasil que, com orgulho, não se contenta só com esmola e rejeita o dinheiro dos corruptos já é um país melhor que o que vende seu voto por um prato de feijão.
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