quinta-feira, 29 de novembro de 2018

'Postos Ipiranga' na lógica do novo governo

A forma da água depende de seu estado físico. Líquida, conforma-se ao recipiente que a contém. Assim são os governos, dependem dos limites impostos por margens políticas. Sob Jair Bolsonaro, o governo federal vai assumindo a forma imposta pelas circunstâncias, a maior ou menor força do presidente eleito, de sua margem, maior ou menor, para exercer influência mais ou menos decisiva. Seu estilo.

Onde o presidente eleito não tem força — ou admite nada entender do assunto —, não se mete. Delega e outorga; concede aquilo a que tem chamado de “Carta Branca”. Nasce, assim, um “Posto Ipiranga”, onde se vai buscar tudo aquilo a que o presidente não tem resposta. É, de certo modo, anti Dilma, a presidente que sabia de tudo, interferia em tudo, até nos planos de voo dos pilotos do avião presidencial.


A postura de Bolsonaro, a princípio, talvez seja menos nociva, em certo sentido ao menos. A interferência diária, “a marcação em cima”, como se dizia de Dilma, pode criar um caos tanto quanto a falta de coordenação e a omissão. Leigo que dá ordem a médicos mata o paciente, ainda assim, presidente é presidente. E, na cultura brasileira, associa-se a ele toda a responsabilidade, todos os bônus e os ônus pelos resultados.

Pode-se argumentar que, a exemplo do que se dizia de Lula, o presidente não precisa ser um técnico e, talvez, nem deva ser, bastando que tenha sensibilidade política para agir no momento certo. Política é timing; essa habilidade é mesmo um dom, uma arte. Pode-se governar a partir disso. No mais, é saber de quem se cercar. Ouvi os conselheiros certos — o que também não parecia ser o caso de Dilma.

É isso que será testado em Bolsonaro, qualquer veredito a esse respeito, neste momento, será precipitação. Liderança não se dá em tese, a priori, em expectativa; ela se dá sob o fogo dos conflitos, nas batalhas. Liderança é sempre testada. E, como presidente da República, obviamente, Bolsonaro ainda não foi testado.

Mas, já se pode dizer que, em virtude das condições gerais do país e das características pessoais do futuro presidente, seu governo vai tomando contornos mais nítidos. Já se pode vislumbrar a forma de organização, que tende a ser fundada em centros com considerável autonomia, se não independentes. Em outros termos, vislumbra-se um governo organizado em várias unidades de Postos Ipiranga.

São cinco:

1) Posto Ipiranga Econômico”, sob governança de Paulo Guedes: trata-se de um centro feito à imagem e semelhança do futuro ministro; um super ministério da Economia, incorporando várias frentes: Fazenda, Planejamento e Orçamento, Indústria e Comércio Exterior, BNDES, Banco Central, Bancos oficiais. Além de exercer forte influência sob os ministérios da Agricultura, Minas e Energia, e Infraestrutura. Sua lógica é do liberalismo puro, radical e ortodoxo, com vários de seus membros oriundos da Universidade de Chicago. Além da questão fiscal, tende a se voltar para a diminuição do Estado, privatizações e fim de incentivos fiscais, subsídios, protecionismos; se voltará à transformações de longo prazo, com vistas à implantação de uma lógica de mercado nas mais diversas frentes. Com base na filosofia de que não se faz omeletes sem esmagaros ovos, abrirá diversas frentes de conflitos inevitáveis diante de propósitos assumidos já durante a campanha — e, a partir daí, pode mesmo perder os ovos;

2) “Posto Ipiranga do ‘Combate ao Crime’”, sob o julgamento de Sérgio Moro: muito mais que Justiça e Segurança, incorporará a Polícia Federal, o Coaf, a conexão com o Judiciário e o Ministério Público. Uma Lava Jato Turbo. Será a frente que buscará dar conta de desafios tão grandes quanto os econômicos. E foi, sobretudo, com essa pauta que Jair Bolsonaro foi eleito: ações incisivas e efetivas contra a corrupção, o crime organizado e a violência das ruas. Será daí que poderá brotar a mais célere — e cheia de pressão — das fontes de popularidade (ou desgaste) do governo. Moro organiza sua frente à sua imagem e semelhança, locando em cada posto-chave delegados do PF e promotores que devem implantar o clima e o estilo de “Curitiba”, no governo federal;

3)“Posto Ipiranga Militar”, sob o comando do futuro ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva: exercerá poder de moderação sob o governo. Note, “poder de moderação” e não “poder moderador” sobre Poderes e instituições. Até aqui, tem servido para conter qualquer tentação de politização sobre as FFAA, restringindo-as ao papel definido pela Constituição Federal, à parte de qualquer intenção de usá-las a outro propósito. Pode-se dizer que, até aqui pelo menos, os militares colocaram os civis para fora dos quartéis, ainda que os civis tenham levado militares ao governo;

4) Posto Ipiranga Ideológico”, sob hegemonia dos filhos do presidente, com influência de seu guru filosófico, além, é claro, da fiscalização e veto da bancada evangélica: está aí o núcleo de propaganda política e ideológica — o que Bolsonaro criticava no PT, com o sinal trocado. A partir do Itamaraty, do ministério da Educação e o futuro ministério da Cidadania, que deve incorporar Cultura, Esportes, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social, tende a irradiarem-se os valores e crenças da direita globalistado trumpismo bolsonariano,do pentecostalismo. Evidentemente, abrirá guerrilhas contra valores e costumes do mundo moderno, despertando conflitos na área dos direitos e liberdades civis;

5)“Posto Ipiranga Político”, que deveria estar sob a liderança de Onyx Lorenzoni, futuro ministro-chefe de uma Casa Civil esvaziada que, pelo cheiro, tende a ser tutelada por militares da Reserva, como o futuro ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, e o futuro ministro Secretário-Geral da Presidência da República, general Carlos Alberto dos Santos Cruz: o lócusda queda-de-braço do bolsonarismo com o sistema político e os meios de comunicação tradicionais. Não por acaso, a Secretaria de Governo ficou sob comando de um militar, de modo não apenas a endurecer com a negociação fisiológica, como também inibi-la no nascedouro. Há aí muito da influência de Augusto Heleno e do vice, Hamilton Mourão, além de Bolsonaro: a visão disruptiva que o presidente eleito vocalizou durante suas quase três décadas, como parlamentar. Na reação do sistema político e do status quo do Legislativo, pode-se esperar muito barulho e turbulência vindo daí. Algumas derrotas em votações importantes, como, aliás, já tem ocorrido. Apenas ao final do primeiro ano de mandato é que se poderá avaliar quem ganhou e quem perdeu esse inevitável rali.

Resta saber se, com tantos centros, desafios e conflitos, governo será um todo uniforme; se as partes se somarão ou entrarão em disputa e conflito; se haverá coordenação central sob tantos polos de poder — sob a gerência do vice Mourão, com antigas atribuições da Casa-Civil —, a partir da autoridade do presidente da República. Se Jair Bolsonaro terá sensibilidade, habilidade e sagacidade para coibir vaidades, naturais crises de primas-donas,e arbitrar conflitos de verdade tanto no interior da equipe, quanto fora do governo. Resta saber se terá sucesso. Só o tempo dirá.

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