terça-feira, 17 de julho de 2018

Seria verdade se não houvesse juízes em Berlim

Após o gesto de arrogância do imperador Frederico II que exigia comprar o moinho de um camponês para ampliar seu castelo, ameaçando-o de tomar-lhe a propriedade diante da recusa, assim respondeu o camponês: “Isso seria verdade, se não houvesse juízes em Berlim!”.

Poucas expressões ilustram com igual força a esperança do cidadão comum na Justiça para protegê-lo da arbitrariedade. Sob a égide dessas esperanças o Poder Judiciário adquiriu uma autoridade moral e uma responsabilidade únicas na edificação do Estado de Direito.

Enquanto as autoridades de outros Poderes podem ser influenciadas por interesses pessoais, preconceitos e simpatias políticas, os juízes permanecem firmes, serenos, comprometidos com a Constituição e o Estado de Direito. Embora seja uma imagem fortemente idealizada, ela corresponde às expectativas da cidadania democrática e os juízes e ministros, como regra, zelam para não se afastar delas.


Ao STF, cúpula do Judiciário, sempre se reconheceu essa imagem de independência na defesa dos princípios democráticos e da Constituição, de preservação da segurança jurídica, além da óbvia coerência jurídica, da autêntica cortesia e do respeito mútuo entre seus pares e do indispensável equilíbrio pessoal. Hoje, infelizmente, o STF parece afastar-se desses princípios que o legislador constitucional lhe outorgou e a cultura cívica dos cidadãos consolidou.

Um órgão concebido para pronunciar-se primariamente por seu plenário está cada vez mais decidindo por suas turmas, quando não monocraticamente. Mais grave ainda, está incorrendo na perigosa prática de opor turma ao plenário, sempre que com esse expediente se contorne o problema da maioria.

Difícil entender como não percebem os ministros que, ao substituírem o pronunciamento do plenário pelo da turma ou pelo monocrático, a natureza suprema do STF se debilita; que a condição individual de ministro fica comprometida por não ter a autoridade moral que a de membro do plenário lhe confere.

Mais grave ainda é não estar consciente de que o conflito pessoal, público e agressivo entre ministros reduz mais ainda a legitimidade de um órgão que foi concebido para lidar com sabedoria, prudência e respeito com as inevitáveis divergências.

É também inconcebível permitir que divergências transformadas em conflitos com titulares de outras esferas judiciais comprometa a autoridade moral dos ministros, contribua para estimular dúvidas sobre sua isenção e enfraqueça a imagem do Poder Judiciário e da própria democracia para os cidadãos.

Mais lamentável, porém, é o fato de que o Poder Judiciário, não obstante suas imperfeições, era o que nos restara da tradição de racionalidade, independência, profissionalismo, competência e dedicação que originalmente formatou a natureza do serviço público, herdado da experiência europeia do século 19 e que, pelo abuso do casuísmo interesseiro e do aparelhamento partidário do Estado, destruímos ao longo dos séculos 20 e 21.

Uma tradição secular, cultivada na Corte por sucessivas gerações de juristas, ficou comprometida pela interferência política, pelos egos exacerbados, pelas antipatias pessoais, por uma desnecessária e exagerada presença na mídia, pela exibição descabida de erudição e pelo uso legitimador dos argumentos especiosos, falácias e até mesmo chicanas para obter maioria em decisões.

Pela anuência de seus ministros, questões políticas desgastantes que não se encontram taxativamente decididas nas leis, nos decretos, na tradição, nas regras morais, no bom senso são levadas a decisões da Suprema Corte, cuja pauta vem sendo ocupada por certos assuntos políticos que bem podiam ser decididos pelas Casas do Legislativo, pelos partidos, pelo governo federal e por órgãos de outras instâncias do Judiciário.

Essa abertura do STF para as questões políticas foi muito além do razoável por motivos procedimentais, como a pauta sobrecarregada de ações que exigem julgamento imediato; razões político-midiáticas decorrentes da transmissão das sessões pela TV e do tratamento dos ministros pela mídia como personagens políticos; pela ação dos advogados que, em razão de seus clientes, ganharam acesso privilegiado ao STF; e, principalmente, pela esperteza da classe política – do Legislativo e do Executivo –, que, ameaçada pela Operação Lava Jato, evita decisões impopulares, entregando de bom grado parte de suas responsabilidades ao Judiciário na sua esfera mais elevada.

O maior adversário do STF entretanto, a constranger sua liberdade, é a jurisprudência firmada. Há que contorná-la para ajustar a decisão às necessidades políticas. Nesse procedimento reside um dos maiores riscos para qualquer tribunal superior.

Nada é mais difícil para uma Corte de Justiça do que a fixação da jurisprudência firmada. Não por outra razão os ministros costumam ser avaros para exercer esse poder e mais avaros ainda para modificá-la.

Sabem que, ao fixá-la, estão assumindo a responsabilidade de decidir por antecipação, o que só pode ser feito transitando no limite de suas competências. Sabem que essa é uma competência que se legitima por sua permanência, no duplo sentido de duração temporal e resistência à mudança.

A história das instituições democráticas ensina que por vezes, em casos de graves crises, instituições podem perder sua capacidade de reagir aos desafios que enfrentam. Nessas situações por vezes ocorre o fenômeno da substituição institucional, isto é, outra instituição dilata suas competências para substituir na prática e transitoriamente a que foi paralisada pela crise. Infelizmente, na atual situação, quando Legislativo e Executivo evitam enfrentar a grave crise em que nos encontramos para se ocuparem das eleições, o Judiciário, pelo seu órgão supremo, perdeu as condições de assumir a função de substituição institucional, como uma reserva de emergência da democracia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário