domingo, 17 de junho de 2018

Futebol e política

Dia de Brasil e Copa do Mundo na outrora distante Rússia, hoje próxima pelas artes mágicas da revolução digital. Por décadas a Meca do comunismo, que viria por meio de outra revolução, a proletária, a Moscou de agora é um dos bastiões de um iliberal capitalismo de compadres, com perturbadores toques mafiosos. Impossível não levar a sério o tema esportivo, entrelaçado à política, uma vez que nós, bem ou mal, infame goleada alemã à parte, continuamos a sentir familiarmente vazio o País nas tardes de domingo, como na bela canção mineira do Milton. Aqui ainda é o país do futebol, o que sucede nas quatro linhas captura magneticamente nossa atenção, mesmo que prodígios como Garrincha e Pelé não possam surgir como numa esteira fabril dos tempos do fordismo.

Outro motivo para despertar a atenção é que o futebol está longe de ser uma paixão banal, como uma perspectiva ultraintelectualista sugere. Parábola do homem comum a roçar os céus – apregoa o verso de outro poeta –, o futebol firmou-se como o esporte de massa por excelência num século que viu a ascensão, as conquistas e as tragédias desse mesmo homem comum reunido em grandes grupos sociais, como as classes, ou em coletividades nacionais, que muitas vezes forneciam as bases de um sentir que ia além de quaisquer fronteiras particulares – incluídas as de classe.

Aos poucos, e um pouco por toda parte, o football perdia sua aura estrangeira e aristocrática, enraizava-se em cada realidade nacional, insinuava-se até no vocabulário, com seus goals e seus backs, offsides e corners. A novidade levava de roldão a oposição de homens excepcionais, como o romancista Lima Barreto, que torcia o nariz para aquele esporte esnobe que lhe parecia chocar-se com sua percepção do que era, ou devia ser, o elemento popular e nacional. Em outras latitudes, cenas igualmente surpreendentes aconteciam. O filósofo Benedetto Croce, por exemplo, considerava inexplicável a paixão futebolística e ainda mais inexplicável o contentamento que uma vitória do Nápoles lhe causava...

Antonio Gramsci – sim, ele mesmo, o tal solerte intelectual que, segundo concepções paranoides, hoje substitui o russo Lenin no bizarro arsenal de fantasmagorias subversivas – não deixou por menos. Como se sabe, implicava acidamente com sua Itália presa nas malhas de uma política mesquinha e provinciana, que a seu ver agia de modo “transformista”, trazendo socialistas e anarcossindicalistas para as coalizões de governo, não sem antes emasculá-los e deles retirar todo o potencial para mudanças efetivas. Pois um dos ideais gramscianos era o liberalismo anglo-saxão. A Itália – dizia em 1918, depois da revolução bolchevique! – não seria afeita a esportes, mas ao preguiçoso e insalubre baralho. E o futebol, ao contrário, parecia-lhe a melhor expressão de uma sociedade individualista e competitiva, mas submetida a regras e obediente aos árbitros.

No pequeno texto O futebol e o baralho (inserido no primeiro volume de seus Escritos Políticos, organizados por Carlos Nelson Coutinho), Gramsci vitupera os truques desonestos, o ar empesteado, o ambiente malsão dos jogos de cartas. Cabeças quebradas e até mortes derivavam como que naturalmente desse modo de jogar e se divertir – na verdade, uma metáfora para sociedades em que o passado nunca passa, atrofia a vontade dos vivos e impede o surgimento da novidade histórica, a saber, a modernidade liberal, que, para usar os próprios termos do pensador, traria em si, como expressão mais coerentemente universal, o socialismo e o comunismo.

De acordo com essa visão, afirmada na atmosfera triunfante da Revolução Russa, com todo o seu cortejo de sonhos e ilusões acerca da regeneração total do homem, não podia haver nenhuma barreira da China entre o liberalismo e seus críticos marxistas mais contundentes. Sem nada conceder a uma visão irenista das sociedades humanas, ignorando conflitos e contraposições muitas vezes de difícil ou impossível composição, o fato é que, como entre nós tem afirmado repetidamente o antropólogo Roberto DaMatta, o futebol ensina ser inconcebível a ideia de destruir o adversário, já que sem este, obviamente, não há jogo nem campeonato, nem vitória nem derrota.

Os extremos políticos estão obviamente distantes da generosa ideia de que as disputas, que serão quase sempre duríssimas por envolverem paixões e interesses demasiadamente humanos, podem e devem se desenvolver num ambiente de regras democraticamente estabelecidas e de lealdade a valores e instituições minimamente comuns. Neste instante mesmo, ao nosso redor, as fúrias estão desatadas e contê-las ou colocá-las à margem, para que não prossigam em sua obra corrosiva, parece um daqueles inacreditáveis trabalhos de Hércules. Mas as forças que se dispuserem a serenar ânimos pseudorradicais, desarmar falsas rebeliões antidemocráticas e apontar rumos positivos para a sociedade se credenciarão a um papel verdadeiramente histórico, tornando-se credoras de todos os brasileiros razoáveis.

Sociedades, para usar a linguagem da filosofia, são formadas por complexos de complexos que remetem incessantemente uns aos outros. Cruzam-se tradições culturais e políticas, misturam-se diferentes objetivações humanas nas artes, nas ciências ou nos esportes. Adversários, Garrincha e Pelé protagonizaram jogos lendários entre seus respectivos times e foram imbatíveis na seleção brasileira. Intelectuais de campos diferentes, Croce e Gramsci se sobrepuseram e contrapuseram na análise fina daquilo que chamavam de esfera ético-política. Se bem pensarmos, mesmo observando atores e cenários inteiramente diferentes, não terá sido outra a intenção de um grande intelectual conservador do século 19 ao escrever que “nosso antagonista é nosso auxiliar”.

É preciso pensar mil vezes nesta última frase, semeá-la por aí e lutar para que dê frutos.

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