domingo, 17 de junho de 2018

A longa história das notícias falsas

A primeira vítima da guerra é a verdade, afirma um velho ditado jornalístico. Embora o mais correto fosse dizer que a verdade é vítima recorrente em qualquer sociedade organizada, porque a mentira política é uma arte tão velha quanto a civilização. A verdade é um conceito fugidio na metafísica e mutante nas ciências – uma nova descoberta pode anular o que se dava como certo –, mas no dia-a-dia o assunto é bem diferente: há coisas que aconteceram, e outras que não; mas os fatos, reais ou inventados, influenciam a nossa percepção e opinião.

Desde a Antiguidade, verdade e mentira se misturaram muitíssimas vezes, e essas realidades falsas influenciaram nosso presente. Assim já escreveu o grande historiador francês Paul Veyne em seu ensaio Os Gregos Acreditavam em Seus Mitos? (Unesp): “Os homens não encontram a verdade, a constroem, como constroem sua história”.

Chegados a este ponto, convém fazer uma distinção entre notícias falsas e propaganda: ambas crescem e se multiplicam no mesmo ecossistema, mas não são exatamente iguais. A propaganda procura convencer, ser eficaz, e para isso pode recorrer a todo tipo de instrumento, da arte e do cinema aos pasquins e redes sociais. As notícias falsas, um dos ramos da propaganda, são diferentes: procuram enganar, criar outra realidade. A preocupação com a perpetuação desses equívocos e com os mecanismos que os criam e multiplicam não é nova: Réflexions d’Un Historien Sur les Fausses Nouvelles de la Guerre, (“reflexões de um historiador sobre a notícias falsas das guerra”, Allia, 2012) é o título de um pequeno e influente ensaio que Marc Bloch publicou originalmente... em 1921.

Esse historiador, assassinado pelos nazistas em 1944, foi um dos mais influentes do século XX. Impulsionou a Escola dos Anais, que mudou o foco da pesquisa do passado para a vida cotidiana, e retornou das trincheiras da Primeira Guerra Mundial alucinado com a importância que as notícias falsas haviam tido. Isso o levou a refletir sobre sua origem e difusão, num texto que poderia ter sido escrito na era do Brexit, de Vladimir Putin e de Donald Trump, nestes tempos das redes sociais e de mensagens virais. “As notícias falsas mobilizaram as massas. As notícias falsas, em todas as suas formas, encheram a vida da humanidade. Como nascem? De que elementos extraem sua substância? Como se propagam e crescem?”, escreve, para afirmar um pouco mais adiante: “Um erro só se propaga e se amplifica, só ganha vida com uma condição: encontrar um caldo de cultivo favorável na sociedade onde se expande. Nele, de forma inconsciente, os homens expressam seus preconceitos, seus ódios, seus temores, todas as suas emoções”. Em outras palavras, as notícias falsas necessitam de gente que queira acreditar nelas.
Mudar a história

O século XX e o que já vivemos do XXI são a era das mentiras em massa. Três dos grandes conflitos em que os Estados Unidos se meteram neste período começaram com invenções: a guerra de Cuba (1898), com a manipulação dos jornais; a guerra do Vietnã (1955-1975), com o incidente do golfo de Tonkin, e a invasão do Iraque de 2003, com as inexistentes armas de destruição em massa de Saddam Hussein. “A guerra contra a Espanha [em 1898] foi obra de Hearst e de Pulitzer”, escreveu o repórter Manuel Leguineche em seu ensaio sobre o nascimento do jornalismo sensacionalista, Yo Pondré la Guerra (“eu porei a guerra”, El País Aguilar). “Foi sua grande oportunidade de mudar a história, de criar uma psicose de guerra, de fabricá-la, por meio de sensacionalismo, tiragem, circulação milionária, venda maciça, chute no estômago do leitor”.

Ao mesmo tempo em que surgiam os jornais de circulação maciça, nascia também um certo ceticismo em relação a eles. Era como se alguns se empenhassem em demonstrar que a verdade estava em outro lugar. Essa desconfiança se prolonga até nossos dias, com aqueles que acreditam erroneamente que a imprensa conta mentiras, e que as redes sociais oferecem verdades. Com o telégrafo, chegou a possibilidade de enviar rapidamente histórias através de longas distâncias; com o linotipo foi possível imprimir maciçamente; e com os novos meios de transporte essas publicações puderam ser distribuídas em numerosos lugares. Mas nesse mesmo momento, no final do século XIX, surgiu a desconfiança quanto àquilo que contavam, a mesma que nutre agora os que procuram essa outra verdade no Facebook, que para alguns é a única janela para o mundo. É muito significativa, nesse sentido, uma cena de Um Estudo em Vermelho, o primeiro romance de Sherlock Holmes, publicado em 1887, em que o detetive e Watson repassam os diferentes jornais – The Daily Telegraph, Daily News, Standard – e todos contam uma versão falsa do crime que estão investigando, impulsionada por motivos políticos: uns culpam os europeus, outros os estrangeiros, ou os liberais. Nenhum cita uma pista confiável.

Uma das grandes tragédias do século XX, as matanças maciças promovidas pelos grandes totalitarismos, conseguiu se esconder detrás de notícias falsas. As ditaduras nazista e soviética não só fabricaram falsidades tremendas como também foram capazes de construir outra realidade, em que o verdadeiro e o falso eram elementos acessórios. Como apontou o escritor francês Emmanuel Carrère, “na URSS não se aboliu a propriedade privada, aboliu-se a realidade”. Agora pode parecer quase incrível que enquanto Stálin assassinava e deportava milhões de pessoas a bondade do socialismo se mantinha como um dogma em grandes setores do Ocidente. Muita gente achou, de boa ou má fé, que a realidade era, nesse caso, uma notícia falseada. Assim explicava o historiador Tony Judt em Pensando o Século XX (Objetiva): “Os que entenderam corretamente o século tiveram que imaginar um mundo para o qual não existiam precedentes. Tiveram que supor que essa situação insólita e claramente absurda estava acontecendo na realidade, em vez de dar como certo, como todos os demais, que era grotescamente inimaginável”.

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